A espiritualidade popular, muitas vezes marginalizada pelas
narrativas hegemônicas, é o motor de diversas manifestações folclóricas. No
Brasil, essa conexão é particularmente evidente na forma como tradições de
matriz africana, indígena e europeia se sincretizam e se expressam em danças,
músicas e celebrações. Não é incomum que um festejo popular carregue em si a
invocação de orixás, encantados ou santos padroeiros, revelando uma cosmovisão
onde a natureza, os ancestrais e as divindades coexistem e influenciam o
cotidiano.
O Corpo como Altar: Dança, Ritmo e Transe
Em diversas práticas folclóricas, o corpo é o principal
mediador entre o mundo material e o espiritual. O ritmo hipnótico dos
tambores do candomblé, a vivacidade dos passos do maracatu, ou a fluidez das
ladainhas da capoeira, por exemplo, não são apenas movimentos performáticos.
Eles são a linguagem do transe, a ponte para a incorporação de entidades e a
manifestação do sagrado. Como aponta Regina Abreu (2007), a dança, nesse
contexto, é um sistema de comunicação complexo, um "ritual de
passagem" que permite aos participantes experimentar outras dimensões da
existência e fortalecer laços comunitários com o divino e com os ancestrais.
Essa corporeidade sacra é uma forma de resistência
contra a descorporificação e a racionalização excessiva do mundo moderno. Ao
dançar, cantar e vibrar coletivamente, as comunidades reafirmam suas crenças,
preservam memórias ancestrais e reencantam o espaço e o tempo, criando
territórios de liberdade e pertencimento.
Narrativas de Encantamento e a Cosmovisão Popular
Além do gesto e do ritmo, a espiritualidade folclórica se
manifesta nas narrativas de encantamento. Mitos sobre a Iara, o
Curupira, ou as lendas dos caboclos-de-lança no carnaval pernambucano, são mais
do que contos; são expressões de uma cosmovisão que reconhece a
vitalidade dos elementos naturais, a presença de forças invisíveis e a
interconexão de tudo que existe. Essas narrativas, transmitidas oralmente e
recriadas a cada geração, oferecem chaves para compreender a relação do povo
com seu ambiente, sua história e seus valores éticos.
Para autores como Mário de Andrade (1928), o folclore é a
alma do povo, e essa alma está intrinsecamente ligada à sua forma de
compreender o sagrado. As manifestações espirituais no folclore, portanto, não
são dogmáticas, mas fluidas, adaptáveis e profundamente enraizadas na
experiência vivida das comunidades. Elas oferecem um caminho para a reexistência,
um contraponto às narrativas que buscam desencantar o mundo e esvaziar de
sentido as práticas coletivas.
A Força do Folclore como Patamar Espiritual
Em um cenário global que muitas vezes tende à homogeneização
e ao secularismo, o folclore brasileiro emerge como um poderoso lembrete da diversidade
espiritual e da capacidade humana de tecer sentido através do simbólico. Ao
revisitar as festas, os rituais e as narrativas folclóricas com um olhar atento
à sua dimensão espiritual, compreendemos que esses saberes não são apenas um
"passado" a ser preservado, mas uma fonte inesgotável de
inspiração para a construção de futuros mais conectados, significativos e,
verdadeiramente, encantados. O sagrado que dança nas ruas e nas aldeias do
Brasil é, em última análise, a própria expressão da resiliência e da riqueza de
sua gente.
Referências Bibliográficas:
- ABREU,
Regina. A fabricação do Imaterial: o corpo, o transe e a pesquisa
etnográfica. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano
13, n. 27, p. 25-47, jan./jun. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/XwB8yDMrL87kLwM3yMTr3dC/.
Acesso em: 09 jul. 2025.
- ANDRADE,
Mário de. Ensaio sobre a Música Brasileira. São Paulo: Livraria
Martins Editora, 1928. (Obra fundamental que aborda o folclore e a cultura
brasileira).
- PRANDI,
Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001. (Livro que explora a dimensão espiritual e mitológica das
religiões de matriz africana no Brasil).
- ROCHA,
Everardo. Magia e Capitalismo: Um estudo sobre a publicidade.
São Paulo: Brasiliense, 1985. (Embora foque em publicidade, o autor
desenvolve o conceito de "encantamento" de forma relevante para
a discussão do folclore).
- SOUZA,
Laura de Mello e. Inferno, Céu e Purgatório: O imaginário religioso
na colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. (Livro que discute
o imaginário religioso no Brasil, incluindo suas manifestações populares).
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