A Missão Divina do Deus Sol
Segundo os Comentarios Reales de los Incas, do
cronista Garcilaso de la Vega, a lenda começa com o deus sol, Inti. Vendo a
condição primitiva em que os seres humanos viviam — em estado de barbárie, sem
leis, religião ou organização —, Inti sentiu compaixão. Decidiu, então, enviar
dois de seus filhos à Terra, Manco Capac e Mama Ocllo (que eram também irmãos e
esposos), para civilizar esses povos.
Eles emergiram das espumas do Lago Titicaca, um local de
profundo significado espiritual para as culturas andinas. O deus Sol
entregou-lhes um bastão de ouro maciço, conhecido como tupayauri, com
uma instrução clara: deveriam viajar e, no local onde o bastão afundasse na
terra com um único golpe, deveriam fundar a capital de seu futuro império. Este
local seria a terra fértil escolhida pelos deuses (ROSTWOROWSKI, 2001).
A Jornada e a Fundação de Cusco
Manco Capac e Mama Ocllo iniciaram sua peregrinação,
caminhando para o norte a partir do Titicaca. Por onde passavam, tentavam
cravar o bastão de ouro no solo, mas a terra era sempre dura e impenetrável.
Sua jornada os levou através de vales e montanhas até chegarem ao vale do rio
Huatanay. Lá, no topo de uma colina chamada Huanacauri, Manco Capac novamente
tentou fincar o bastão. Desta vez, para sua admiração, o ouro afundou
suavemente na terra, desaparecendo por completo (GARCILASO DE LA VEGA, 1985).
O sinal divino havia sido dado. Aquele era o lugar escolhido
por seu pai, Inti. Ali, eles fundariam sua cidade. Manco Capac e Mama Ocllo
reuniram os povos dispersos da região, que, maravilhados com a aparência e a
sabedoria dos filhos do Sol, prontamente os seguiram. A cidade fundada foi
chamada de Cusco, que na língua quéchua significa "o umbigo do
mundo", simbolizando seu papel como o centro político, religioso e
geográfico do futuro império.
A Estruturação da Sociedade Incaica
A missão civilizatória de Manco Capac e Mama Ocllo foi além
da fundação de uma cidade. Eles ensinaram aos homens e mulheres as bases da
vida em sociedade, estabelecendo uma ordem divina que se refletiria em toda a
estrutura incaica.
- Manco
Capac, como figura masculina, convocou os homens e os ensinou a lavrar
a terra, a construir canais de irrigação, a semear, a colher e a fabricar
ferramentas. Ele lhes deu leis, ensinou-os a viver em comunidade e
estabeleceu a adoração ao deus Sol como a religião oficial.
- Mama
Ocllo, como figura feminina, reuniu as mulheres e as ensinou a fiar e
a tecer a lã de lhamas e alpacas para fazer roupas. Também as instruiu
sobre os deveres domésticos, a criação dos filhos e a organização da vida
familiar (MÉTRAUX, 1982).
Essa divisão de tarefas não era meramente prática; ela
estabelecia um dualismo complementar (homem/mulher, sol/lua, céu/terra) que era
central para a cosmovisão andina.
A Lenda como Ferramenta de Legitimação
O mito de Manco Capac e Mama Ocllo foi fundamental para a
consolidação e expansão do Império Inca. Ele serviu como uma poderosa
ferramenta de legitimação política e cultural:
- Direito
Divino de Governar: Ao se declararem descendentes diretos do deus Sol,
os imperadores incas (Sapa Inca) justificavam seu poder absoluto. Eles não
eram meros líderes políticos, mas encarnações divinas na Terra, o que
garantia a lealdade e a obediência de seus súditos.
- Centralidade
de Cusco: A lenda solidificou Cusco como a capital sagrada, o centro
indiscutível de onde emanava todo o poder e a ordem.
- Identidade
Cultural: A narrativa posicionou os incas não como conquistadores
brutais, mas como portadores da civilização. Isso justificava a expansão
do império (Tawantinsuyu) como uma missão benevolente para levar ordem e
conhecimento aos povos "bárbaros" que subjugavam.
Assim, a lenda da fundação do império não é apenas o início
da história inca, mas o próprio alicerce sobre o qual sua complexa sociedade
foi construída.
Referências Bibliográficas
GARCILASO DE LA VEGA, Inca. Comentarios Reales de los
Incas. Tomo I. Lima: Ediciones del Centenario del Banco de Crédito del
Perú, 1985.
MÉTRAUX, Alfred. The History of the Incas. Tradução
de George Ordish. New York: Schocken Books, 1982.
ROSTWOROWSKI, María. Historia del Tahuantinsuyu.
Lima: Instituto de Estudios Peruanos (IEP), 2001.
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