Radio Evangélica

domingo, 6 de julho de 2025

O Egito sob os Fatímidas: Centralização Xiita, Integração Africana e Esplendor Cultural (séculos X–XII)

A ascensão da dinastia fatímida no Egito, em 969 d.C., marcou o início de uma nova etapa histórica, em que o país não apenas se tornou o centro de um império islâmico alternativo ao dos abássidas, mas também experimentou um florescimento cultural e econômico sem precedentes desde a Antiguidade. Fundado por uma dinastia xiita ismaelita, o Califado Fatímida estabeleceu sua capital no Cairo — cidade projetada para simbolizar e consolidar sua autoridade. O Egito, agora epicentro de um projeto imperial concorrente ao sunismo abássida, passou a desempenhar papel-chave na política islâmica e no comércio afro-asiático.

A Fundação do Cairo e o Reordenamento do Poder

Os fatímidas, vindos do Norte da África, tomaram o controle do Egito derrotando os ikshídidas e fundaram, em 969, a cidade de al-Qāhira ("A Vitoriosa"), hoje Cairo. A cidade foi concebida como uma metrópole palaciana e religiosa, destinada exclusivamente à nova elite xiita. O Egito tornou-se, assim, a base de operações do califado fatímida, que aspirava liderar o mundo islâmico como califado rival ao dos abássidas (BRENTJES, 2003).

Administrativamente, os fatímidas promoveram uma reestruturação centralizada. O vizir (wazīr), uma figura de crescente importância, tornou-se o principal administrador do Estado, com autoridade sobre finanças, justiça e forças militares. A burocracia fatímida era altamente desenvolvida, composta por secretarias especializadas (dīwāns) e registros detalhados, o que permitiu uma governança eficiente e uma arrecadação fiscal regular (LEVANONI, 1991).

Religião e Legitimidade: A Difusão do Ismaelismo

Diferentemente dos califados sunitas anteriores, os fatímidas impuseram a vertente xiita ismaelita como doutrina oficial. Contudo, essa imposição foi seletiva e estratégica: embora o clero sunita tenha sido deslocado das posições mais altas, a população em geral não foi forçada a converter-se. A autoridade religiosa foi centralizada na figura do califa, que também era imã — líder espiritual infalível segundo a teologia ismaelita (DAFTARY, 1990).

A disseminação da doutrina ismaelita foi promovida através de uma rede de missionários (dāʿīs), que atuavam em várias regiões do império. No entanto, o Egito permaneceu majoritariamente sunita, o que levou a uma convivência delicada entre diferentes correntes do Islã. Apesar disso, os fatímidas toleraram a diversidade religiosa em troca de estabilidade política e eficiência administrativa.

Coptas e Cristãos sob os Fatímidas

Os cristãos coptas continuaram a ocupar cargos administrativos e a manter sua estrutura religiosa sob o domínio fatímida. Em certos períodos, como no governo do califa al-Hakim bi-Amr Allah (r. 996–1021), houve repressões pontuais e episódios de destruição de igrejas, como a demolição da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém (COLE, 2003). No entanto, essas ações não refletiram necessariamente uma política sistemática e, após o fim do governo de al-Hakim, as relações entre muçulmanos e cristãos voltaram a um estado de relativa normalidade.

A Igreja Copta continuou a ser reconhecida como representante legítima de sua comunidade e seus patriarcas mantiveram residência em Cairo. Os mosteiros, especialmente os do deserto de Wadi Natrun, permaneceram centros de resistência cultural e espiritual copta.

Comércio, Cultura e Ciência: O Apogeu Fatímida

Um dos legados mais notáveis da dinastia fatímida foi seu incentivo ao comércio e à produção cultural. O Egito tornou-se o elo central entre o Mediterrâneo, o Magrebe e o oceano Índico, favorecido por sua posição estratégica e pelas políticas mercantilistas do califado. Cairo tornou-se um polo cosmopolita onde mercadores, intelectuais, artesãos e religiosos de diversas origens coexistiam (GOITEIN, 1967).

A dinastia patrocinou a construção de universidades, bibliotecas e instituições religiosas, como a célebre mesquita-universidade de al-Azhar, fundada em 970. Embora hoje al-Azhar seja o centro do islamismo sunita, durante o período fatímida foi o principal bastião do ensino xiita ismaelita. A produção científica floresceu, especialmente nas áreas de medicina, matemática, astronomia e filosofia.

A Arte Fatímida e sua Estética Islâmica Original

A arte fatímida desenvolveu um estilo refinado e simbólico, que combinava elementos do mundo islâmico oriental e do legado copta-bizantino. A cerâmica, os tecidos bordados (tiraz), os manuscritos ilustrados e as joias representavam a sofisticação de uma elite culta e cosmopolita (BLOOM, 2007). Os edifícios religiosos, como as mesquitas de al-Hakim e de al-Azhar, revelam uma arquitetura robusta e inovadora, com arcadas simétricas, minaretes coroados e motivos geométricos e florais.

Declínio e Legado

A partir do século XII, o califado fatímida começou a perder força diante de tensões internas, crises econômicas e da pressão das Cruzadas e dos turcos seljúcidas. Em 1171, o poder fatímida foi formalmente extinto com a ascensão de Saladino, que restaurou o sunismo e fundou a dinastia aiúbida. Mesmo assim, o legado fatímida perdurou no urbanismo, nas instituições culturais e na memória religiosa de parte da população.

Conclusão: Um Império de Inovação e Contradições

O domínio fatímida no Egito representou um período de esplendor e ambiguidade. Enquanto buscavam afirmar uma nova ortodoxia religiosa, os fatímidas demonstraram grande capacidade de tolerância, pragmatismo político e visão administrativa. Sua herança permanece visível na estrutura urbana do Cairo, nas instituições educacionais como al-Azhar e no florescimento cultural que marcou o Egito como um dos centros mais sofisticados do mundo islâmico medieval.

Referências Bibliográficas

  • Bloom, Jonathan M. Arts of the City Victorious: Islamic Art and Architecture in Fatimid North Africa and Egypt. Yale University Press, 2007.
  • Brentjes, Sonja. Knowledge and Education in Classical Islam: Religious Learning between Continuity and Change. Ashgate, 2003.
  • Cole, Juan. Sacred Space and Holy War: The Politics, Culture and History of Shi'ite Islam. I.B. Tauris, 2003.
  • Daftary, Farhad. The Isma'ilis: Their History and Doctrines. Cambridge University Press, 1990.
  • Goitein, S.D. A Mediterranean Society: The Jewish Communities of the Arab World as Portrayed in the Documents of the Cairo Geniza. University of California Press, 1967.
  • Levanoni, Amalia. A Turning Point in Mamluk History: The Third Reign of al-Nasir Muhammad Ibn Qalawun. Brill, 1991.

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