A Fundação do Cairo e o Reordenamento do Poder
Os fatímidas, vindos do Norte da África, tomaram o controle
do Egito derrotando os ikshídidas e fundaram, em 969, a cidade de al-Qāhira
("A Vitoriosa"), hoje Cairo. A cidade foi concebida como uma
metrópole palaciana e religiosa, destinada exclusivamente à nova elite xiita. O
Egito tornou-se, assim, a base de operações do califado fatímida, que aspirava
liderar o mundo islâmico como califado rival ao dos abássidas (BRENTJES, 2003).
Administrativamente, os fatímidas promoveram uma
reestruturação centralizada. O vizir (wazīr), uma figura de crescente
importância, tornou-se o principal administrador do Estado, com autoridade
sobre finanças, justiça e forças militares. A burocracia fatímida era altamente
desenvolvida, composta por secretarias especializadas (dīwāns) e registros
detalhados, o que permitiu uma governança eficiente e uma arrecadação fiscal
regular (LEVANONI, 1991).
Religião e Legitimidade: A Difusão do Ismaelismo
Diferentemente dos califados sunitas anteriores, os
fatímidas impuseram a vertente xiita ismaelita como doutrina oficial. Contudo,
essa imposição foi seletiva e estratégica: embora o clero sunita tenha sido
deslocado das posições mais altas, a população em geral não foi forçada a
converter-se. A autoridade religiosa foi centralizada na figura do califa, que
também era imã — líder espiritual infalível segundo a teologia ismaelita
(DAFTARY, 1990).
A disseminação da doutrina ismaelita foi promovida através
de uma rede de missionários (dāʿīs), que atuavam em várias regiões do império. No entanto, o Egito permaneceu
majoritariamente sunita, o que levou a uma convivência
delicada entre diferentes correntes do Islã. Apesar
disso, os fatímidas toleraram a diversidade
religiosa em troca de estabilidade política e eficiência administrativa.
Coptas e Cristãos sob os Fatímidas
Os cristãos coptas continuaram a ocupar cargos
administrativos e a manter sua estrutura religiosa sob o domínio fatímida. Em
certos períodos, como no governo do califa al-Hakim bi-Amr Allah (r. 996–1021),
houve repressões pontuais e episódios de destruição de igrejas, como a
demolição da Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém (COLE, 2003). No entanto,
essas ações não refletiram necessariamente uma política sistemática e, após o
fim do governo de al-Hakim, as relações entre muçulmanos e cristãos voltaram a
um estado de relativa normalidade.
A Igreja Copta continuou a ser reconhecida como
representante legítima de sua comunidade e seus patriarcas mantiveram
residência em Cairo. Os mosteiros, especialmente os do deserto de Wadi Natrun,
permaneceram centros de resistência cultural e espiritual copta.
Comércio, Cultura e Ciência: O Apogeu Fatímida
Um dos legados mais notáveis da dinastia fatímida foi seu
incentivo ao comércio e à produção cultural. O Egito tornou-se o elo central
entre o Mediterrâneo, o Magrebe e o oceano Índico, favorecido por sua posição
estratégica e pelas políticas mercantilistas do califado. Cairo tornou-se um
polo cosmopolita onde mercadores, intelectuais, artesãos e religiosos de
diversas origens coexistiam (GOITEIN, 1967).
A dinastia patrocinou a construção de universidades,
bibliotecas e instituições religiosas, como a célebre mesquita-universidade de
al-Azhar, fundada em 970. Embora hoje al-Azhar seja o centro do islamismo
sunita, durante o período fatímida foi o principal bastião do ensino xiita
ismaelita. A produção científica floresceu, especialmente nas áreas de
medicina, matemática, astronomia e filosofia.
A Arte Fatímida e sua Estética Islâmica Original
A arte fatímida desenvolveu um estilo refinado e simbólico,
que combinava elementos do mundo islâmico oriental e do legado copta-bizantino.
A cerâmica, os tecidos bordados (tiraz), os manuscritos ilustrados e as joias
representavam a sofisticação de uma elite culta e cosmopolita (BLOOM, 2007). Os
edifícios religiosos, como as mesquitas de al-Hakim e de al-Azhar, revelam uma
arquitetura robusta e inovadora, com arcadas simétricas, minaretes coroados e
motivos geométricos e florais.
Declínio e Legado
A partir do século XII, o califado fatímida começou a perder
força diante de tensões internas, crises econômicas e da pressão das Cruzadas e
dos turcos seljúcidas. Em 1171, o poder fatímida foi formalmente extinto com a
ascensão de Saladino, que restaurou o sunismo e fundou a dinastia aiúbida.
Mesmo assim, o legado fatímida perdurou no urbanismo, nas instituições
culturais e na memória religiosa de parte da população.
Conclusão: Um Império de Inovação e Contradições
O domínio fatímida no Egito representou um período de
esplendor e ambiguidade. Enquanto buscavam afirmar uma nova ortodoxia
religiosa, os fatímidas demonstraram grande capacidade de tolerância,
pragmatismo político e visão administrativa. Sua herança permanece visível na
estrutura urbana do Cairo, nas instituições educacionais como al-Azhar e no
florescimento cultural que marcou o Egito como um dos centros mais sofisticados
do mundo islâmico medieval.
Referências Bibliográficas
- Bloom,
Jonathan M. Arts of the City Victorious: Islamic Art and Architecture
in Fatimid North Africa and Egypt. Yale University Press, 2007.
- Brentjes,
Sonja. Knowledge and Education in Classical Islam: Religious Learning
between Continuity and Change. Ashgate, 2003.
- Cole,
Juan. Sacred Space and Holy War: The Politics, Culture and History of
Shi'ite Islam. I.B. Tauris, 2003.
- Daftary,
Farhad. The Isma'ilis: Their History and Doctrines. Cambridge
University Press, 1990.
- Goitein,
S.D. A Mediterranean Society: The Jewish Communities of the Arab World
as Portrayed in the Documents of the Cairo Geniza. University of
California Press, 1967.
- Levanoni,
Amalia. A Turning Point in Mamluk History: The Third Reign of al-Nasir
Muhammad Ibn Qalawun. Brill, 1991.
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