Introdução
A Arábia Saudita, o maior país da Península Arábica,
apresenta um modelo político singular no cenário global: uma monarquia absoluta
teocrática. Diferentemente de outras monarquias constitucionais ou
parlamentares, o poder real é ilimitado por uma constituição escrita no sentido
ocidental, sendo guiado pela lei islâmica (Sharia) e pela autoridade dos
governantes da Casa de Saud. Para compreender a complexidade e a resiliência
deste sistema, é fundamental mergulhar em sua história, nas bases de sua legitimidade
e nas dinâmicas que a moldam no presente. Este artigo tem como objetivo
analisar a estrutura da monarquia saudita, traçando suas origens, delineando
suas características fundamentais e examinando os desafios e reformas que
buscam garantir sua continuidade em um mundo em constante transformação.
Gênese e Evolução: O Pacto Fundacional
A história da Arábia Saudita como entidade política moderna
remonta ao século XVIII, com o estabelecimento de um pacto crucial entre duas
figuras-chave: Muhammad ibn Saud, um líder tribal local da região de Diriyah, e
Muhammad ibn Abd al-Wahhab, um reformador religioso que pregava um retorno
rigoroso aos princípios do Islã. Este pacto, ocorrido por volta de 1744,
estabeleceu as bases da legitimidade da dinastia Al Saud: o poder político e
militar para os Al Saud, e a autoridade religiosa e a implementação da doutrina
wahabita para os descendentes de al-Wahhab (conhecidos como Al ash-Sheikh).
Essa aliança resultou na formação do Primeiro Estado
Saudita, que expandiu sua influência por grande parte da Península Arábica. No
entanto, foi destruído no início do século XIX pelas forças otomanas e
egípcias. Um Segundo Estado Saudita surgiu no século XIX, mas também sucumbiu a
conflitos internos e regionais.
O Estado saudita moderno, o Terceiro Estado Saudita, foi
fundado por Abdulaziz ibn Saud (Ibn Saud) no início do século XX. Após
reconquistar Riade em 1902, Ibn Saud gradualmente unificou as diversas tribos e
regiões da Península Arábica, culminando na proclamação do Reino da Arábia
Saudita em 1932. A descoberta de vastas reservas de petróleo na década de 1930
transformaria a economia do reino e consolidaria ainda mais o poder da
monarquia, proporcionando os recursos necessários para a modernização e para a manutenção
de uma extensa rede de clientelismo.
A Natureza da Monarquia Saudita: Poder Absoluto e
Legitimidade Religiosa
A monarquia saudita é caracterizada por ser:
* Absoluta:
O rei detém o poder executivo, legislativo e judicial. Ele é o chefe de
Estado, chefe de governo, comandante-em-chefe das forças armadas e o mais
alto juiz do país. Não existe uma constituição formal no sentido ocidental;
a Lei Básica de Governança (promulgada em 1992) serve como um tipo de
constituição, estabelecendo que o Alcorão e a Suna (tradições do Profeta
Maomé) são a lei suprema do reino. |
- Teocrática:
A legitimidade do rei deriva de sua adesão à lei islâmica e de seu papel
como "Guardião das Duas Mesquitas Sagradas" (Meca e Medina), um
título que enfatiza sua responsabilidade religiosa e seu papel central no
mundo islâmico. A família real mantém uma aliança histórica e contínua com
a elite religiosa wahabita, que fornece apoio e justificação para o
governo em troca da implementação de suas interpretações do Islã.
- Patrimonialista:
O Estado é, em muitos aspectos, uma extensão do domínio da família real. O
sistema de sucessão é agnático, ou seja, de irmão para irmão (entre os
filhos de Ibn Saud) e, mais recentemente, para os netos, com o rei tendo a
prerrogativa de nomear o príncipe herdeiro.
- Consultiva:
Embora o poder seja absoluto, a tomada de decisões tradicionalmente
envolve um processo de consulta (shura) dentro da família real, com
conselheiros e líderes tribais. O rei e o príncipe herdeiro se reúnem
regularmente com súditos em "majlis" (assembleias abertas) para
ouvir suas queixas e solicitações.
Estruturas de Poder e Governança
Apesar do caráter absoluto, a governança saudita envolve
diversas instituições:
* Conselho
de Ministros: Presidido pelo rei, é o principal órgão executivo. Ministros
são geralmente membros da família real ou indivíduos tecnocratas de
confiança. |
- Conselho
da Shura: Um corpo consultivo nomeado pelo rei, composto por 150
membros. Embora não tenha poder legislativo independente, ele revisa leis,
tratados e planos de desenvolvimento, oferecendo recomendações ao rei e ao
Conselho de Ministros. Sua composição tem sido gradualmente diversificada,
incluindo mulheres desde 2013.
- Família
Real: A Casa de Saud é vasta, com milhares de príncipes e princesas.
Os cargos-chave no governo, forças armadas e empresas estatais são
frequentemente ocupados por membros seniores da família, garantindo a
coesão e o controle.
- Estabelecimento
Religioso (Ulema): Liderado pelos Al ash-Sheikh, o corpo de ulemás
(eruditos religiosos) desempenha um papel crucial na interpretação da
Sharia, na supervisão de tribunais religiosos e na educação. Seu apoio é
vital para a legitimidade da monarquia.
Desafios e Reformas no Século XXI
A Arábia Saudita enfrenta desafios significativos que
impulsionam reformas internas, especialmente sob a liderança do Rei Salman bin
Abdulaziz Al Saud e seu filho, o Príncipe Herdeiro Mohammed bin Salman (MBS).
- Diversificação
Econômica (Visão 2030): A dependência quase total do petróleo torna a
economia vulnerável às flutuações do mercado. A Visão 2030, um ambicioso
plano de reformas, visa diversificar a economia, desenvolver novos setores
(turismo, tecnologia), privatizar ativos estatais e criar empregos para
uma população jovem e crescente.
- Reformas
Sociais: MBS tem introduzido reformas sociais notáveis, como a
permissão para mulheres dirigirem, a abertura de cinemas e o relaxamento
de algumas restrições à interação social. No entanto, essas mudanças são
frequentemente acompanhadas por uma repressão a dissidentes e críticos,
levantando preocupações sobre direitos humanos.
- Transição
Geracional: A sucessão de poder tem sido uma preocupação. Com a
ascensão de MBS, a monarquia está passando de uma geração de filhos de Ibn
Saud para a de netos, o que pode trazer novas dinâmicas internas e
desafios de consolidação de poder.
- Pressões
por Direitos Humanos e Liberdades Civis: O regime é frequentemente
criticado por organizações internacionais por seu histórico de direitos
humanos, incluindo restrições à liberdade de expressão, reunião e
associação, além da aplicação da pena de morte.
- Dinâmicas
Regionais: A Arábia Saudita desempenha um papel central nas tensões
regionais, notadamente com o Irã, e na manutenção da estabilidade do
mercado global de petróleo.
Conclusão
A monarquia na Arábia Saudita é um sistema complexo e
multifacetado, forjado pela história, pela religião e pela riqueza do petróleo.
Sua capacidade de adaptar-se, embora muitas vezes de forma controlada e
centralizada, tem sido crucial para sua sobrevivência e para a manutenção de
sua posição no cenário global. Os desafios do século XXI – desde a necessidade
de uma economia pós-petróleo até as pressões por maior abertura social e
política – testarão a resiliência dessa monarquia. A forma como a Casa de Saud
navegará essas águas turbulentas definirá não apenas o futuro do reino, mas
também terá implicações significativas para o Oriente Médio e para a ordem
global.
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