Radio Evangélica

sexta-feira, 30 de maio de 2025

As Tramas Invisíveis do Imaginário Popular: Poder, Resistência e Subjetividade no Folclore Regional Brasileiro

O folclore, muitas vezes relegado à esfera do lúdico ou da oralidade infantil, carrega em seu bojo uma complexa rede de sentidos que perpassa estruturas sociais, políticas e psíquicas. Em particular, as figuras regionais do imaginário popular brasileiro configuram-se como narrativas condensadas que revelam não apenas modos de vida, mas também conflitos históricos, dilemas éticos e experiências coletivas de resistência. Nesse contexto, os personagens folclóricos não são apenas produtos da fantasia, mas sim artefatos simbólicos de uma consciência cultural subterrânea — frequentemente silenciada pelo discurso oficial, mas persistentemente viva na memória das comunidades.

A força desses personagens reside justamente na sua ambiguidade. Não são heróis nos moldes clássicos, tampouco vilões redutíveis à maldade. São entidades que habitam fronteiras: entre o humano e o animal, o natural e o sobrenatural, o sagrado e o profano, o justo e o transgressor. Sua existência tensiona as dicotomias modernas e denuncia a artificialidade de muitas delas. Quando emerge a figura do Caboclo d’Água, por exemplo, não se trata apenas de uma criatura temida por pescadores — trata-se da projeção simbólica de uma relação ancestral com os rios, onde o medo, o respeito e a dependência se entrelaçam. Ele é o rosto da natureza que observa, cobra e protege.

Essa dimensão simbólica adquire um contorno ainda mais profundo quando observamos os personagens associados à punição, à errância ou à expiação. O Corpo-Seco, o Romãozinho, o Homem do Mar — todos eles evocam trajetórias de falha e castigo, mas também carregam críticas subjacentes aos sistemas morais impostos. São, em muitos casos, expressões de uma justiça popular que resiste ao esquecimento, encarnando a memória dos que foram feridos por estruturas de poder, como o latifúndio, o patriarcado, o colonialismo e a escravidão.

Importa destacar, ainda, a presença de vozes dissidentes e subalternizadas no interior desses mitos. A mulher, frequentemente transformada em criatura mística — como Matinta Perera, Comadre Fulozinha ou Maria Caninana —, reaparece sob forma de potência e ameaça. Nessas figuras, o feminino se torna elemento ativo da narrativa, não mais como objeto do desejo ou da tutela masculina, mas como agente que transgride normas, impõe limites e guarda segredos. Essas personagens não apenas rompem com os modelos de feminilidade coloniais e cristãos, mas também resgatam arquétipos arcaicos de sabedoria e proteção, que dialogam com cosmologias indígenas e africanas.

Nesse emaranhado de narrativas, o folclore regional revela-se como um território de disputa simbólica. A oralidade, aqui, é também um campo de memória e resistência. Lendas que se perpetuam não apenas entretêm — elas educam, alertam, acusam. São formas de transmissão de saberes não legitimados pelas academias, mas profundamente enraizados na experiência social e histórica dos povos. E é por essa razão que as figuras folclóricas sobrevivem, ainda que marginalizadas, em uma sociedade marcada pela ruptura entre modernidade e ancestralidade.

Em tempos de homogeneização cultural e apagamento das identidades regionais, o resgate dessas figuras não deve ser feito apenas em nome da tradição, mas sobretudo como gesto político. Valorizar os heróis e anti-heróis do imaginário popular é reconhecer que há, no subsolo da cultura brasileira, uma riqueza simbólica capaz de iluminar outras formas de estar no mundo — mais sensíveis à natureza, mais críticas ao poder, mais abertas ao mistério da vida. Nesse sentido, o folclore deixa de ser apenas uma coleção de lendas para se tornar o que sempre foi: uma linguagem da alma coletiva.

Referências Bibliográficas

  • AKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2001.
  • BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
  • CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2013.
  • CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global Editora, 2012.
  • HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
  • LIMA, Antônio Carlos de. Folclore brasileiro – heróis e lendas. Recife: Cepe Editora, 2009.
  • RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul: saberes nascidos na luta. São Paulo: Cortez, 2019.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

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