A força desses personagens reside justamente na sua
ambiguidade. Não são heróis nos moldes clássicos, tampouco vilões redutíveis à
maldade. São entidades que habitam fronteiras: entre o humano e o animal, o
natural e o sobrenatural, o sagrado e o profano, o justo e o transgressor. Sua
existência tensiona as dicotomias modernas e denuncia a artificialidade de
muitas delas. Quando emerge a figura do Caboclo d’Água, por exemplo, não se
trata apenas de uma criatura temida por pescadores — trata-se da projeção simbólica
de uma relação ancestral com os rios, onde o medo, o respeito e a dependência
se entrelaçam. Ele é o rosto da natureza que observa, cobra e protege.
Essa dimensão simbólica adquire um contorno ainda mais
profundo quando observamos os personagens associados à punição, à errância ou à
expiação. O Corpo-Seco, o Romãozinho, o Homem do Mar — todos eles evocam
trajetórias de falha e castigo, mas também carregam críticas subjacentes aos
sistemas morais impostos. São, em muitos casos, expressões de uma justiça
popular que resiste ao esquecimento, encarnando a memória dos que foram feridos
por estruturas de poder, como o latifúndio, o patriarcado, o colonialismo e a
escravidão.
Importa destacar, ainda, a presença de vozes dissidentes e
subalternizadas no interior desses mitos. A mulher, frequentemente transformada
em criatura mística — como Matinta Perera, Comadre Fulozinha ou Maria Caninana
—, reaparece sob forma de potência e ameaça. Nessas figuras, o feminino se
torna elemento ativo da narrativa, não mais como objeto do desejo ou da tutela
masculina, mas como agente que transgride normas, impõe limites e guarda
segredos. Essas personagens não apenas rompem com os modelos de feminilidade
coloniais e cristãos, mas também resgatam arquétipos arcaicos de sabedoria e
proteção, que dialogam com cosmologias indígenas e africanas.
Nesse emaranhado de narrativas, o folclore regional
revela-se como um território de disputa simbólica. A oralidade, aqui, é também
um campo de memória e resistência. Lendas que se perpetuam não apenas entretêm
— elas educam, alertam, acusam. São formas de transmissão de saberes não
legitimados pelas academias, mas profundamente enraizados na experiência social
e histórica dos povos. E é por essa razão que as figuras folclóricas
sobrevivem, ainda que marginalizadas, em uma sociedade marcada pela ruptura entre
modernidade e ancestralidade.
Em tempos de homogeneização cultural e apagamento das
identidades regionais, o resgate dessas figuras não deve ser feito apenas em
nome da tradição, mas sobretudo como gesto político. Valorizar os heróis e
anti-heróis do imaginário popular é reconhecer que há, no subsolo da cultura
brasileira, uma riqueza simbólica capaz de iluminar outras formas de estar no
mundo — mais sensíveis à natureza, mais críticas ao poder, mais abertas ao
mistério da vida. Nesse sentido, o folclore deixa de ser apenas uma coleção de
lendas para se tornar o que sempre foi: uma linguagem da alma coletiva.
Referências Bibliográficas
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Cepe Editora, 2009.
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- SANTOS,
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São Paulo: Cortez, 2019.
- VIVEIROS
DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo:
Cosac Naify, 2002.
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