O Guardião do Folclore
Para compreender a relevância do Boitatá, é essencial
recorrer à sua origem. O renomado folclorista Luís da Câmara Cascudo, em sua
obra fundamental, o Dicionário do Folclore Brasileiro, descreve o
Boitatá como um protetor dos campos contra aqueles que provocam incêndios
criminosos. Segundo Cascudo (2000), a lenda varia regionalmente, mas o núcleo
de sua função permanece: a defesa da natureza. Ele persegue e cega os homens
que desmatam e queimam as florestas, personificando a vingança da própria terra
contra a destruição humana.
Essa narrativa ancestral não é apenas uma história
fantástica. Ela reflete uma sabedoria popular que reconhece o fogo como uma
força perigosa quando usada de forma irresponsável, estabelecendo uma clara
dicotomia entre o fogo natural (simbolizado pelo próprio ser mítico) e o fogo
predatório, ateado pelo homem.
O Fogo da Lenda e a Realidade das Cinzas
Se na lenda o Boitatá é o fogo que protege, na realidade, o
fogo é o protagonista de uma tragédia contínua. Os dados são alarmantes. O
monitoramento realizado por instituições como o Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE) revela, ano após ano, a extensão devastadora das
queimadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal. Esses incêndios, em sua grande
maioria, não são acidentes naturais, mas sim resultado de ações humanas, como o
desmatamento para a expansão agrícola e a limpeza de pastagens (INPE, [s.d.]).
A consequência é um cenário que o Boitatá da lenda lutaria
para impedir: perda de biodiversidade, destruição de ecossistemas inteiros,
emissão de gases de efeito estufa e ameaça direta a povos indígenas e
comunidades tradicionais. A fumaça que cobre cidades e a terra carbonizada são
a prova material de que o alerta contido no mito foi ignorado.
Reinterpretando o Mito: Um Alerta Ancestral
O mito do Boitatá pode ser interpretado como uma
manifestação da consciência ecológica dos povos que primeiro habitaram estas
terras. O acadêmico Antonio Carlos Diegues (1996), em sua obra O Mito
Moderno da Natureza Intocada, argumenta que as sociedades tradicionais
possuem um conhecimento profundo sobre seus ambientes, muitas vezes codificado
em suas histórias e mitos.
Nessa perspectiva, o Boitatá deixa de ser apenas uma
criatura fantasmagórica para se tornar um símbolo da resiliência ecológica. Sua
fúria contra os incendiários é uma metáfora para as consequências inevitáveis
da quebra do equilíbrio ambiental. A lenda ensina que a agressão à natureza
gera uma resposta igualmente poderosa, seja ela mítica ou, como vemos hoje, na
forma de crises climáticas e ambientais.
Conclusão: Da Lenda à Ação
O Boitatá nos força a questionar nossa relação com o meio
ambiente. Enquanto a lenda fala de um guardião sobrenatural, a responsabilidade
de hoje é inteiramente humana. A proteção de nossas florestas não virá de uma
serpente de fogo, mas de políticas públicas eficazes, fiscalização rigorosa e
uma mudança coletiva de consciência. O trabalho de órgãos como o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) na
prevenção e combate a incêndios é a materialização moderna da proteção que o
mito do Boitatá representa.
Ouvir a voz do Boitatá no século XXI significa, portanto,
valorizar o conhecimento ancestral, reconhecer a ciência que aponta a urgência
da crise e, acima de tudo, agir. A lenda não é uma solução, mas um eco profundo
em nossa cultura, nos lembrando que somos parte da natureza e que incendiá-la
é, em última análise, incendiar a nós mesmos.
Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore
brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
DIEGUES, Antonio Carlos Sant'Ana. O mito moderno da
natureza intocada. São Paulo: NUPAUB-USP, 1996.
INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS
NATURAIS RENOVÁVEIS (IBAMA). Prevenção e combate a incêndios florestais.
Brasília, DF, [s.d.]. Disponível em: https://www.gov.br/ibama/pt-br/assuntos/incendios-florestais.
Acesso em: 8 ago. 2025.
INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS (INPE). Programa
Queimadas. São José dos Campos, [s.d.]. Disponível em: https://www.inpe.br/queimadas/portal.
Acesso em: 8 ago. 2025.
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