Radio Evangélica

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Cuca e o medo infantil: como os mitos disciplinavam as crianças

A figura da Cuca, imortalizada na cultura popular brasileira principalmente pela obra de Monteiro Lobato, transcende a simples caracterização de uma vilã de histórias infantis. Com sua aparência reptiliana e seus poderes de bruxaria, ela personifica um sofisticado e ancestral mecanismo de controle social: o uso do medo como ferramenta pedagógica. Analisar a Cuca é, portanto, investigar como mitos e lendas foram historicamente empregados para inculcar regras, impor limites e disciplinar as crianças em uma época onde a psicologia infantil ainda não havia proposto alternativas baseadas no diálogo e na compreensão.

O arquétipo do "monstro raptor" não é uma exclusividade do folclore brasileiro. Figuras como o Bicho-Papão, o Homem do Saco ou o Boogeyman anglo-saxão cumprem a mesma função social. Eles dão forma a uma ameaça abstrata, tornando-a compreensível para a mente infantil. A Cuca, especificamente, ameaça sequestrar crianças desobedientes, especialmente aquelas que não dormem na hora certa ou se aventuram sozinhas em locais proibidos. A mensagem é clara e direta: a transgressão das regras parentais resulta em uma consequência terrível e imediata — ser levado para a caverna da bruxa.

Esse método disciplinar opera em duas frentes. Primeiramente, ele estabelece fronteiras físicas e comportamentais. A noite, a floresta e o desconhecido tornam-se o território do monstro, reforçando a segurança do lar e a autoridade dos pais como protetores. A criança aprende a temer não apenas a criatura, mas tudo o que ela representa: o afastamento do núcleo familiar, a quebra de rotinas e a desobediência. Em segundo lugar, o medo promove a internalização das normas. A ameaça externa da Cuca transforma-se, com o tempo, em uma voz de controle interna. A regra deixa de ser apenas uma imposição dos pais para se tornar um princípio que a própria criança busca seguir para garantir sua segurança.

Contudo, a pedagogia do medo, embora eficaz em seu objetivo de gerar obediência, é hoje amplamente criticada por suas consequências psicológicas. Especialistas em desenvolvimento infantil apontam que o uso sistemático do medo pode gerar ansiedade crônica, pesadelos, distúrbios de sono e uma relação de desconfiança com as figuras de autoridade. A disciplina imposta pelo terror não ensina à criança o porquê das regras — os perigos reais do mundo ou a importância da convivência social —, mas apenas a obedecer para evitar uma punição fantasiosa.

Em conclusão, a Cuca é um poderoso símbolo de um modelo de educação que, por séculos, viu no medo uma ferramenta legítima e eficaz. Ela representa a sabedoria popular encontrando uma forma de traduzir a necessidade de ordem e segurança em uma linguagem acessível à infância. Ao mesmo tempo, a evolução das práticas pedagógicas e a crescente valorização da saúde emocional infantil nos levaram a reavaliar esse método. Hoje, a Cuca sobrevive mais como um ícone cultural nostálgico do que como uma ameaça real, um testemunho de como as sociedades transformam seus mitos à medida que seus próprios valores e conhecimentos evoluem.

Referências Bibliográficas

  1. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Global Editora, 2012.
  2. LOBATO, Monteiro. O Saci. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995. (Obra original de 1921).
  3. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. A Formação da Leitura no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora Ática, 2007.
  4. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

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