O Folclore como Território Simbólico
Quando um povo narra sua história por meio
de mitos e rituais, está, ao mesmo tempo, delimitando um território simbólico.
As narrativas de encantados, seres da mata ou do rio, como a Mãe-d'Água ou o
Caipora, estão ligadas a espaços específicos — florestas, águas, montanhas.
Nesses espaços, as populações tradicionais (ribeirinhos, quilombolas,
indígenas) constroem relações éticas com a natureza, criando formas de
convivência sustentáveis que são, frequentemente, ignoradas pelos modelos
hegemônicos de desenvolvimento.
Como afirma Boaventura de Sousa Santos
(2019), há uma ecologia de saberes que precisa ser reconhecida. O folclore,
nesse sentido, não é "atraso", mas outra forma de conhecimento. Ele
territorializa o saber popular, conecta o corpo ao chão e a memória ao lugar. O
mito do Curupira, por exemplo, não é apenas uma figura assustadora: é um alerta
contra a devastação da floresta.
Ancestralidade e Resistência Epistêmica
O folclore também é uma pedagogia da
ancestralidade. Cada cantiga, cada história ou brincadeira é um gesto de
reconexão com aqueles que vieram antes. Em sociedades marcadas pela
colonização, pela escravidão e pela tentativa sistemática de apagamento das culturas
originárias, narrar é resistir.
Como aponta Leda Maria Martins (2002), as
tradições orais funcionam como "corpos-memória", e o folclore atua
como tecnologia de inscrição da experiência. Por isso, manifestações como o
Congado, a Festa do Divino ou o Toré indígena não são meras expressões
folclóricas: são rituais de reexistência, onde a comunidade reafirma sua
história e sua dignidade.
Pedagogias Populares e a Educação pela
Tradição
O folclore também deve ser compreendido
como prática educativa. Nas rodas de capoeira, nas cirandas e nos sambas de
roda, ensina-se ética, história, convivência e crítica social. Trata-se de uma
pedagogia popular, não formal, mas altamente sofisticada. Paulo Freire (1987)
já nos lembrava que "ninguém educa ninguém: os homens se educam entre
si". O folclore é esse espaço onde o saber circula horizontalmente, de
forma dialógica e comunitária.
Nas escolas, quando bem conduzido, o ensino
do folclore pode romper com o olhar folclorizante e exotizante, abrindo
caminhos para uma educação antirracista, decolonial e plural. A valorização das
narrativas afro-indígenas e sertanejas no currículo é uma forma de reverter
séculos de silenciamento e desvalorização dos saberes populares.
O Futuro é Ancestral
Em tempos de crise ecológica, desigualdade
extrema e apagamento cultural, revisitar o folclore brasileiro é mais do que um
exercício de memória: é uma urgência política. Ele nos oferece caminhos de vida
não baseados na acumulação, mas na partilha; não centrados na exploração, mas
na reciprocidade.
Recuperar o valor político do folclore é,
como sugere Ailton Krenak (2019), "adiar o fim do mundo". Pois
enquanto houver gente dançando maracatu, contando histórias ao redor da
fogueira ou brincando de Bumba Meu Boi, haverá também resistência — e
esperança.
Referências Bibliográficas
- FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
- MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela.
São Paulo: Perspectiva, 2002.
- KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
- SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o
desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
- SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear.
Petrópolis: Vozes, 2002.
- SILVA, Luiz Antonio. Cultura popular: identidade e resistência. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008.
- BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 2007.
- RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Letramento, 2017.
- BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
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