Bruno
Calabrich, que atua na investigação de políticos em Brasília, contesta
alegações de abusos na operação e afirma que advogados e juízes abraçam um
'hipergarantismo' que supervalorizar os direitos do acusado em detrimento do
interesse público e de uma justa punição dos culpados
Homem de confiança do procurador-geral da República Rodrigo
Janot, o baiano Bruno Calabrich atua em Brasília nos processos em que deputados
e senadores são suspeitos de embolsar propina no bilionário escândalo do
petrolão. Está nas mãos dele, por exemplo, a estrondosa delação do ex-diretor
da Petrobras Nestor Cerveró, que detalhou a partilha de dinheiro a caciques da
política, como o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e disse que o
ex-presidente Lula loteou a estatal - ação endossada por Dilma na BR
Distribuidora, segundo o delator. Em meio às investigações da Lava Jato,
Calabrich esbarra cotidianamente com as alegações das defesas de que réus
poderosos estariam tendo os direitos violados por uma "sanha
acusatória" do Ministério Público. Esse tipo de argumento, diz, é o que
pode ser chamado de "hipergarantismo" ou "garantismo à
brasileira", uma tese que supõe que os direitos individuais de um suspeito
teriam preponderância sobre interesses gerais, como o de a população não ser
prejudicada por desvio de dinheiro. Ao lembrar que em todo o Brasil cerca de
600 pessoas apenas estão presas por crimes relacionados à corrupção, o
procurador da República resume: "A sociedade hoje não aceita mais ser
vítima de crimes de corrupção nessa intensidade".
Críticos da Lava Jato dizem que o Ministério Público tem uma
sanha acusatória contra personalidades conhecidas. Isso é típico das defesas, que adotam um discurso mais para
sociedade e se esquecem do processo. Não vejo essa sanha acusatória do
Ministério Público porque qualquer denúncia deve ser baseada em provas. Se não
for, vai ser rejeitada. No caso da Lava Jato, não verifico que o trabalho dos
colegas esteja sendo feito com o objetivo de exploração midiática dos casos. Se
existir uma sanha acusatória do Ministério Público, o Judiciário tem que rejeitar
as denúncias e absolver. O Ministério Público não acusa por acusar.
Os mesmos advogados afirmam que essa postura seria
antigarantista. A teoria do garantismo
foi concebida para assegurar que mesmo quem cometeu um crime só possa ser
levado à prisão se respeitados todos os direitos fundamentais, incluindo uma
pena justa proporcional ao crime. O Brasil hoje só se tem olhos para a primeira
parte da equação, aquela que trata dos direitos, e trata a pena, ainda que
justa e proporcional, como um mal. É o que chamo de hipergarantismo.
Esse hipergarantismo vale mais para os réus ricos? As teses próprias desse pensamento, que exagera nos direitos
individuais do investigado e que esquece os direitos da sociedade e da vítima,
têm sido invocadas mais nos casos de réus ricos. O hipergarantismo interpreta a
Constituição e as leis brasileiras de modo a supervalorizar direitos do acusado
em detrimento do interesse público e de uma justa punição dos culpados. Eles
têm olhos apenas para uma parte da equação, tornando a balança desequilibrada e
achando que o direito de defesa é aparentemente infinito. O direito de defesa
não pode ser infinito.
Essa interpretação do garantismo ao final visa à impunidade? O interesse da defesa na prática acaba não sendo a apreciação
dos recursos, e sim que fiquem dormitando na mesa dos tribunais até que se
alcance a prescrição. O Ministério Público defende a alteração dos prazos
prescricionais e a execução da sentença a partir do julgamento de segundo grau,
sem esperar o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal. Não
está na Constituição o que é trânsito em julgado. Por isso, a execução poderia
ser acelerada. Hoje a regra é que uma pessoa permaneça em liberdade até que o
STF confirme a prisão. O sistema é irracional porque as decisões de milhares de
juízes acabam sendo dependentes de onze ministros em Brasília. O garantismo à
brasileira é um instrumento de impunidade.
Os tribunais brasileiros são hipergarantistas? Os tribunais hoje estão num ponto de inflexão. Eles já
produziram decisões com caráter de hipergarantismo, sim. Alguns tribunais, em
decisões pontuais, têm entendido que é lícito, por parte de um investigado,
apresentar um documento falso quando de uma abordagem policial para não
produzir provas contra si mesmo. Isso autoriza a pessoa a cometer um crime
apresentando um documento falso a um policial. Um tribunal absolveu um réu da
acusação de porte de arma de fogo porque a atividade dele, ilícita, de
traficante de drogas, era muito perigosa. Na decisão, o juiz faz referências
expressas à atividade dele: já que ele trabalha com tráfico de drogas seria
normal ele usar uma arma. Isso é um exemplo máximo de hipergarantismo. Outro
exemplo são tribunais que têm entendido que, baseado no direito ao silêncio
para não se incriminar, o réu tem direito de mentir em sua defesa. Isso é uma
interpretação equivocada da Constituição, mas no Brasil é majoritário esse
entendimento de que o réu teria direito de mentir. Seria o réu atrapalhando uma
atividade do Estado. Em uma comparação um pouco exagerada, é como se a Justiça
desse aval para que o réu forjasse provas na cena do crime.
Qual foi o exemplo máximo de hipergarantismo na justiça
brasileira? Um bom exemplo de
hipergarantismo foi a tese de que o Ministério Público não podia investigar. O
caso que serviu de mote para o STF foi o do ex-deputado maranhense Remi Trinta.
A tese sobre a investigação do MP ficou sendo debatida ao longo de vários anos.
No meio desse debate, ele não se reelegeu deputado e perdeu o foro
privilegiado. O processo desceu para a primeira instância e acabou prescrito. A
simples invocação da tese hipergarantista atrasou em vários anos a conclusão do
processo e levou à impunidade. E isso que ele era acusado de estelionato por
fraudar o SUS e cobrar dinheiro por um parto de um homem! Foi escandaloso. Não
interessava se o homem pariu ou não. O Ministério Público não poderia estar na
investigação.
O garantismo foi muito invocado na reta final
do julgamento do mensalão. No mensalão, o próprio
ministro Roberto Barroso disse que o caso era um ponto fora da curva. Não sei
se foi um ponto fora da curva. Na verdade, talvez estejamos em uma curva em que
a sociedade hoje não aceita mais ser vítima de crimes de corrupção nessa
intensidade, nessa gravidade. Os tribunais não podem se calar diante do
interesse público de que sejam punidos os autores de crimes do colarinho
branco. Não é que o tribunal vá julgar conforme a pressões das ruas, mas o
interesse público deve pautar o julgamento de qualquer tribunal. O interesse
público está em condenar quem cometeu um crime e assegurar que qualquer
investigado ou processado tenha seus direitos preservados.
Como responde às críticas de que o juiz Sergio Moro está sendo
midiático em suas decisões? Não me consta que o juiz
Sergio Moro tenha violado direitos dos investigados, tanto que as prisões têm
sido mantidas e as provas têm sido mantidas. Não se tem declarado nenhuma prova
inválida. Sob esse ponto de vista, pode se afirmar sem sombra de dúvida que
tanto os procuradores que atuam na Lava Jato quanto os juízes e tribunais têm
tido uma postura garantista. O juiz Moro tem agido de forma garantista.
Desconheço abusos ou ilegalidades praticadas tanto em primeiro grau quanto nos
demais tribunais.
A que atribui a postura desses advogados críticos a operações
como a Lava Jato? Não se discute mais o
mérito, o fato, o crime cometido, e sim se o ator de processo penal poderia ou
não ter juntado uma determinada prova. Alguns advogados ainda têm a mentalidade
de tratar o Estado brasileiro como repressor, policialesco. O Brasil prende
muito? Acho que o Brasil prende mal. Apenas 0,1% dos presos no Brasil estão
presos por corrupção, ou seja, apenas 600 pessoas. Eu acho que tem muito mais
corruptos no Brasil do que 600. Para os crimes de corrupção, o Estado
brasileiro não é nem policialesco nem repressor. Prende-se muito pouco.
Esses argumentos pseudogarantistas incluem as críticas à delação
premiada.Tem-se invocado a tese de que a colaboração premiada seria
inconstitucional porque seria um estímulo à traição, uma imoralidade estimulada
pelo Estado. Esse argumento desconsidera que o compromisso ético que se deve
exigir de alguém não é com seus comparsas de crimes ou com a gangue, e sim com
a sociedade. Se um criminoso trair os comparsas, tanto melhor. A sociedade
espera isso dele e acaba com a omertà,
o pacto de silêncio entre criminosos. No hipergarantismo, é mais valioso o
pacto que um acusado tem com criminosos do que o pacto ético que ele deveria
ter com a sociedade.
Fonte: Veja.com
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