Radio Evangélica

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Cabra-Cabriola e a Pedagogia do Medo no Sertão Nordestino

O imaginário popular é um vasto campo onde medos, valores e normas sociais são tecidos em narrativas fantásticas. No sertão nordestino, um território marcado pela aridez da terra e pela riqueza da oralidade, figuras míticas ganham vida para exercer funções que transcendem o simples entretenimento. Entre elas, a Cabra-Cabriola emerge como uma das personificações mais potentes do medo, atuando como um instrumento de controle e educação informal. Este artigo analisa como o mito da Cabra-Cabriola se constitui em uma "pedagogia do medo", um mecanismo disciplinar profundamente enraizado no contexto sociocultural do sertão.

A Morfologia do Monstro: Quem é a Cabra-Cabriola?

A Cabra-Cabriola é descrita, predominantemente, como uma criatura monstruosa, híbrida de cabra e um ser de traços demoníacos. Com olhos de fogo, hálito fétido e uma fúria incontrolável, sua principal atividade é invadir as casas à noite para sequestrar crianças desobedientes, mentirosas ou que se recusam a dormir na hora certa. Em muitas versões do mito, ela as coloca dentro de um saco e as leva para um lugar desconhecido, para devorá-las ou transformá-las em criaturas semelhantes a ela.

Essa figura não é um caso isolado no folclore brasileiro. Ela pertence à família dos "papas-figo" e "bichos-papões", como o Homem do Saco e o Tutu-Marrambá, cuja função é aterrorizar e disciplinar o público infantil. A origem da Cabra-Cabriola, como aponta Luís da Câmara Cascudo, pode ser uma fusão de lendas europeias (como faunos e o Krampus) com os medos e a fauna local, onde a cabra é um animal comum e resiliente, aqui transfigurado em algo a ser temido.

A Pedagogia do Medo como Ferramenta de Controle Social

A "pedagogia do medo" não é um método formal de ensino, mas uma prática cultural difusa que utiliza o terror como ferramenta para inculcar comportamentos desejados. No contexto do sertão nordestino tradicional, marcado por uma estrutura familiar patriarcal e rígida, a obediência infantil era um valor inquestionável. A Cabra-Cabriola funcionava como uma extensão da autoridade dos pais, uma vigilante sobrenatural que garantia o cumprimento das regras domésticas.

As funções dessa pedagogia são claras:

  1. Imposição de Limites Geográficos: Manter as crianças dentro de casa após o anoitecer. O sertão, com sua vastidão, a caatinga densa e os perigos reais (animais peçonhentos, a escuridão absoluta), tornava essencial esse controle para a segurança dos pequenos.
  2. Reforço da Hierarquia Familiar: A ameaça da criatura validava a autoridade dos pais e avós. Desobedecer a uma ordem não era apenas um ato de rebeldia, mas um convite para que o monstro agisse.
  3. Internalização de Normas Morais: O mito ensinava que a mentira, a teimosia e a desobediência tinham consequências terríveis. A Cabra-Cabriola era, portanto, uma juíza moral do comportamento infantil.

Essa prática educativa, embora eficaz em seu propósito de controle, baseia-se na coerção psicológica, um modelo hoje amplamente questionado pelas teorias pedagógicas modernas, que defendem o diálogo e a compreensão em detrimento da intimidação.

O Sertão como Palco e Berço do Mito

A persistência da Cabra-Cabriola no imaginário sertanejo está intrinsecamente ligada às características da região. A tradição oral é o principal veículo de transmissão de conhecimento e cultura. As histórias contadas ao redor da fogueira ou nas varandas, sob o céu estrelado do sertão, davam corpo e veracidade a essas lendas. A ausência de luz elétrica em muitas áreas rurais potencializava o medo do escuro, tornando cada sombra e cada ruído noturno uma possível manifestação do monstro.

O isolamento geográfico e a vida comunitária fortaleciam a crença coletiva. A história da Cabra-Cabriola não era apenas um conto de uma família, mas um saber compartilhado por toda a vila ou povoado, o que lhe conferia um selo de autenticidade e poder.

Declínio e Ressignificação na Contemporaneidade

Com o avanço da urbanização, da eletrificação rural e da massificação dos meios de comunicação, como a televisão e a internet, a Cabra-Cabriola e outras figuras do folclore perderam grande parte de sua força como instrumentos pedagógicos. As novas gerações, expostas a outros referenciais culturais e a modelos educativos distintos, já não temem o monstro caprino como antes.

Contudo, a Cabra-Cabriola não desapareceu. Ela passou por um processo de ressignificação. Deixou de ser uma ameaça real para se tornar um objeto de estudo acadêmico, uma personagem da literatura regional (como na obra de Ariano Suassuna), uma inspiração para as artes plásticas e até mesmo para o entretenimento em jogos e filmes. Hoje, ela é celebrada como um importante patrimônio cultural imaterial, um testemunho da riqueza do folclore e um espelho das práticas sociais de um Brasil que se transforma.

Conclusão

A lenda da Cabra-Cabriola é muito mais do que uma simples história de terror infantil. Ela é um artefato cultural complexo que revela as dinâmicas de poder, os valores morais e as estratégias de sobrevivência do sertão nordestino. Ao funcionar como um pilar da "pedagogia do medo", ela cumpriu um papel central na manutenção da ordem social e na proteção das crianças em um ambiente repleto de perigos reais. Analisá-la é, portanto, abrir uma janela para a alma do sertão, compreendendo como o medo pôde ser, paradoxalmente, uma forma de cuidado e um instrumento de formação do indivíduo.

Referências Bibliográficas

  1. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Global, 2012.
  2. SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 38. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2011.
  3. ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
  4. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global, 2006.
  5. SILVA, Ana Cláudia. O Medo na Literatura Infantil: uma análise dos contos de advertência. Revista de Estudos da Linguagem, v. 15, n. 2, p. 45-68, 2017.
  6. MONTENEGRO, João Alfredo. Psicossociologia do Nordeste. Fortaleza: Edições UFC, 1999.

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