A Morfologia do Monstro: Quem é a Cabra-Cabriola?
A Cabra-Cabriola é descrita, predominantemente, como uma
criatura monstruosa, híbrida de cabra e um ser de traços demoníacos. Com olhos
de fogo, hálito fétido e uma fúria incontrolável, sua principal atividade é
invadir as casas à noite para sequestrar crianças desobedientes, mentirosas ou
que se recusam a dormir na hora certa. Em muitas versões do mito, ela as coloca
dentro de um saco e as leva para um lugar desconhecido, para devorá-las ou
transformá-las em criaturas semelhantes a ela.
Essa figura não é um caso isolado no folclore brasileiro.
Ela pertence à família dos "papas-figo" e "bichos-papões",
como o Homem do Saco e o Tutu-Marrambá, cuja função é aterrorizar e disciplinar
o público infantil. A origem da Cabra-Cabriola, como aponta Luís da Câmara
Cascudo, pode ser uma fusão de lendas europeias (como faunos e o Krampus) com
os medos e a fauna local, onde a cabra é um animal comum e resiliente, aqui
transfigurado em algo a ser temido.
A Pedagogia do Medo como Ferramenta de Controle Social
A "pedagogia do medo" não é um método formal de
ensino, mas uma prática cultural difusa que utiliza o terror como ferramenta
para inculcar comportamentos desejados. No contexto do sertão nordestino
tradicional, marcado por uma estrutura familiar patriarcal e rígida, a
obediência infantil era um valor inquestionável. A Cabra-Cabriola funcionava
como uma extensão da autoridade dos pais, uma vigilante sobrenatural que
garantia o cumprimento das regras domésticas.
As funções dessa pedagogia são claras:
- Imposição
de Limites Geográficos: Manter as crianças dentro de casa após o
anoitecer. O sertão, com sua vastidão, a caatinga densa e os perigos reais
(animais peçonhentos, a escuridão absoluta), tornava essencial esse
controle para a segurança dos pequenos.
- Reforço
da Hierarquia Familiar: A ameaça da criatura validava a autoridade dos
pais e avós. Desobedecer a uma ordem não era apenas um ato de rebeldia,
mas um convite para que o monstro agisse.
- Internalização
de Normas Morais: O mito ensinava que a mentira, a teimosia e a
desobediência tinham consequências terríveis. A Cabra-Cabriola era,
portanto, uma juíza moral do comportamento infantil.
Essa prática educativa, embora eficaz em seu propósito de
controle, baseia-se na coerção psicológica, um modelo hoje amplamente
questionado pelas teorias pedagógicas modernas, que defendem o diálogo e a
compreensão em detrimento da intimidação.
O Sertão como Palco e Berço do Mito
A persistência da Cabra-Cabriola no imaginário sertanejo
está intrinsecamente ligada às características da região. A tradição oral é o
principal veículo de transmissão de conhecimento e cultura. As histórias
contadas ao redor da fogueira ou nas varandas, sob o céu estrelado do sertão,
davam corpo e veracidade a essas lendas. A ausência de luz elétrica em muitas
áreas rurais potencializava o medo do escuro, tornando cada sombra e cada ruído
noturno uma possível manifestação do monstro.
O isolamento geográfico e a vida comunitária fortaleciam a
crença coletiva. A história da Cabra-Cabriola não era apenas um conto de uma
família, mas um saber compartilhado por toda a vila ou povoado, o que lhe
conferia um selo de autenticidade e poder.
Declínio e Ressignificação na Contemporaneidade
Com o avanço da urbanização, da eletrificação rural e da
massificação dos meios de comunicação, como a televisão e a internet, a
Cabra-Cabriola e outras figuras do folclore perderam grande parte de sua força
como instrumentos pedagógicos. As novas gerações, expostas a outros
referenciais culturais e a modelos educativos distintos, já não temem o monstro
caprino como antes.
Contudo, a Cabra-Cabriola não desapareceu. Ela passou por um
processo de ressignificação. Deixou de ser uma ameaça real para se
tornar um objeto de estudo acadêmico, uma personagem da literatura regional
(como na obra de Ariano Suassuna), uma inspiração para as artes plásticas e até
mesmo para o entretenimento em jogos e filmes. Hoje, ela é celebrada como um
importante patrimônio cultural imaterial, um testemunho da riqueza do folclore
e um espelho das práticas sociais de um Brasil que se transforma.
Conclusão
A lenda da Cabra-Cabriola é muito mais do que uma simples
história de terror infantil. Ela é um artefato cultural complexo que revela as
dinâmicas de poder, os valores morais e as estratégias de sobrevivência do
sertão nordestino. Ao funcionar como um pilar da "pedagogia do medo",
ela cumpriu um papel central na manutenção da ordem social e na proteção das
crianças em um ambiente repleto de perigos reais. Analisá-la é, portanto, abrir
uma janela para a alma do sertão, compreendendo como o medo pôde ser, paradoxalmente,
uma forma de cuidado e um instrumento de formação do indivíduo.
Referências Bibliográficas
- CASCUDO,
Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12. ed. São
Paulo: Global, 2012.
- SUASSUNA,
Ariano. Auto da Compadecida. 38. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2011.
- ANDRADE,
Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,
2002.
- FREYRE,
Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob
o regime da economia patriarcal. 51. ed. São Paulo: Global, 2006.
- SILVA,
Ana Cláudia. O Medo na Literatura Infantil: uma análise dos contos de
advertência. Revista de Estudos da Linguagem, v. 15, n. 2, p.
45-68, 2017.
- MONTENEGRO,
João Alfredo. Psicossociologia do Nordeste. Fortaleza: Edições UFC,
1999.
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