Radio Evangélica

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Bumba Meu Boi: A Paixão, Morte e Ressurreição que Pulsa no Coração do Brasil

No vasto universo do folclore brasileiro, poucas manifestações culturais são tão ricas, complexas e vibrantes quanto o Bumba Meu Boi. Celebrado com maior intensidade no estado do Maranhão, este auto popular transcende a simples definição de festa. É uma ópera a céu aberto, um ritual sagrado e uma poderosa narrativa que reflete a fusão das culturas indígena, africana e europeia que formaram o Brasil. Reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o Bumba Meu Boi é a expressão máxima da alma de um povo.

A Lenda que Deu Origem a Tudo

O coração do Bumba Meu Boi pulsa a partir de uma lenda singela, mas carregada de simbolismo social. A história mais difundida conta sobre Mãe Catirina, uma trabalhadora escravizada que, grávida, sente um forte desejo de comer a língua do boi mais bonito da fazenda. Para satisfazer sua amada, seu marido, Pai Francisco (ou Nego Chico), sacrifica o animal de estimação do amo.

Ao descobrir a morte de seu boi preferido, o fazendeiro se enfurece e ordena a captura de Pai Francisco, ameaçando-o de morte. Desesperado, Francisco busca a ajuda de pajés e curandeiros que, por meio de seus rituais, conseguem ressuscitar o boi. A ressurreição do animal é celebrada com uma grande festa, e o amo perdoa o casal. Essa narrativa central – o ciclo de paixão, morte e ressurreição – é a espinha dorsal de toda a celebração.

Estrutura e Personagens: Um Teatro Popular

O Bumba Meu Boi é um "auto", uma forma de teatro popular medieval, onde a música, a dança e a performance dramática se unem. A apresentação é dividida em atos principais: o batismo do boi, a morte e, finalmente, a apoteose da ressurreição.

Ao redor da figura central do Boi, interpretado por um homem sob uma armação de madeira coberta de veludo bordado, orbitam diversos personagens icônicos:

  • Pai Francisco e Mãe Catirina: O casal que desencadeia a trama, representando a astúcia e a resistência do povo oprimido.
  • O Amo: O dono da fazenda, que conduz a cantoria e a narrativa com seu sotaque forte e seu maracá.
  • Vaqueiros e Caboclos de Pena: Representam a força e a proteção do boi, com seus trajes exuberantes e coreografias elaboradas.
  • Índios, índias e Tapuias: Personagens que homenageiam os povos originários do Brasil, com vestimentas feitas de penas.
  • Cazumbás (no sotaque da Baixada): Figuras místicas e mascaradas que misturam o cômico e o assustador, responsáveis por animar a festa e proteger o boi.

Os Sotaques: As Diferentes Batidas do Coração do Boi

Uma das maiores riquezas do Bumba Meu Boi maranhense é a sua diversidade de "sotaques", que são as variações rítmicas, de instrumentos, coreografias e indumentárias. Cada sotaque representa uma identidade regional. Os principais são:

  • Sotaque de Matraca: Típico de São Luís, é conhecido pelo som ensurdecedor de duas matracas (pequenos blocos de madeira) batidas uma contra a outra. É um dos mais populares e energéticos.
  • Sotaque de Zabumba: Originário da região de Guimarães, utiliza o zabumba (um grande tambor) como instrumento principal, conferindo um ritmo mais cadenciado e solene.
  • Sotaque de Orquestra: Incorpora instrumentos de sopro como saxofones, clarinetes e trombones, criando uma sonoridade mais melódica e influenciada por bandas musicais.
  • Sotaque da Baixada: Proveniente da Baixada Maranhense, caracteriza-se por seus pandeirões e pelas figuras dos cazumbás.
  • Sotaque Costa de Mão: Raro e considerado um dos mais primitivos, utiliza um instrumento peculiar chamado costa de mão (semelhante a um reco-reco) e pequenos tambores.

Conclusão: Um Patrimônio Vivo

O Bumba Meu Boi é muito mais do que um espetáculo folclórico para turistas. É um complexo mecanismo de coesão social, transmissão de memória e celebração da identidade. Através da história de Francisco e Catirina, a festa subverte hierarquias, celebra a resiliência e reafirma, ano após ano, o poder da vida sobre a morte. É um patrimônio que não está confinado em museus, mas que vive e pulsa com a batida dos tambores e o canto do povo nas ruas do Maranhão.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2006.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Global, 2012.

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Cultura popular e sensibilidade romântica. Rio de Janeiro: Funarte, 1988.

PRASS, Luciana. O Bumba-Meu-Boi do Maranhão. Rio de Janeiro: Funarte, 2013. (Coleção Folclore em Cadernos).

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