No vasto universo do folclore brasileiro, poucas manifestações culturais são tão ricas, complexas e vibrantes quanto o Bumba Meu Boi. Celebrado com maior intensidade no estado do Maranhão, este auto popular transcende a simples definição de festa. É uma ópera a céu aberto, um ritual sagrado e uma poderosa narrativa que reflete a fusão das culturas indígena, africana e europeia que formaram o Brasil. Reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o Bumba Meu Boi é a expressão máxima da alma de um povo.
A Lenda que Deu Origem a Tudo
O coração do Bumba Meu Boi pulsa a partir de uma lenda singela, mas
carregada de simbolismo social. A história mais difundida conta sobre Mãe
Catirina, uma trabalhadora escravizada que, grávida, sente um forte desejo de
comer a língua do boi mais bonito da fazenda. Para satisfazer sua amada, seu
marido, Pai Francisco (ou Nego Chico), sacrifica o animal de estimação do amo.
Ao descobrir a morte de seu boi preferido, o fazendeiro se enfurece e
ordena a captura de Pai Francisco, ameaçando-o de morte. Desesperado, Francisco
busca a ajuda de pajés e curandeiros que, por meio de seus rituais, conseguem
ressuscitar o boi. A ressurreição do animal é celebrada com uma grande festa, e
o amo perdoa o casal. Essa narrativa central – o ciclo de paixão, morte e
ressurreição – é a espinha dorsal de toda a celebração.
Estrutura e Personagens: Um Teatro
Popular
O Bumba Meu Boi é um "auto", uma forma de teatro popular
medieval, onde a música, a dança e a performance dramática se unem. A
apresentação é dividida em atos principais: o batismo do boi, a morte e,
finalmente, a apoteose da ressurreição.
Ao redor da figura central do Boi, interpretado por um homem sob
uma armação de madeira coberta de veludo bordado, orbitam diversos personagens
icônicos:
- Pai Francisco e Mãe
Catirina: O
casal que desencadeia a trama, representando a astúcia e a resistência do
povo oprimido.
- O Amo: O dono da fazenda, que
conduz a cantoria e a narrativa com seu sotaque forte e seu maracá.
- Vaqueiros e Caboclos de
Pena:
Representam a força e a proteção do boi, com seus trajes exuberantes e
coreografias elaboradas.
- Índios, índias e Tapuias: Personagens que homenageiam
os povos originários do Brasil, com vestimentas feitas de penas.
- Cazumbás (no sotaque da
Baixada):
Figuras místicas e mascaradas que misturam o cômico e o assustador,
responsáveis por animar a festa e proteger o boi.
Os Sotaques: As Diferentes Batidas do
Coração do Boi
Uma das maiores riquezas do Bumba Meu Boi maranhense é a sua diversidade
de "sotaques", que são as variações rítmicas, de instrumentos,
coreografias e indumentárias. Cada sotaque representa uma identidade regional.
Os principais são:
- Sotaque de Matraca: Típico de São Luís, é
conhecido pelo som ensurdecedor de duas matracas (pequenos blocos de
madeira) batidas uma contra a outra. É um dos mais populares e
energéticos.
- Sotaque de Zabumba: Originário da região de
Guimarães, utiliza o zabumba (um grande tambor) como instrumento
principal, conferindo um ritmo mais cadenciado e solene.
- Sotaque de Orquestra: Incorpora instrumentos de
sopro como saxofones, clarinetes e trombones, criando uma sonoridade mais
melódica e influenciada por bandas musicais.
- Sotaque da Baixada: Proveniente da Baixada
Maranhense, caracteriza-se por seus pandeirões e pelas figuras dos
cazumbás.
- Sotaque Costa de Mão: Raro e considerado um dos
mais primitivos, utiliza um instrumento peculiar chamado costa de mão
(semelhante a um reco-reco) e pequenos tambores.
Conclusão: Um Patrimônio Vivo
O Bumba Meu Boi é muito mais do que um espetáculo folclórico para
turistas. É um complexo mecanismo de coesão social, transmissão de memória e
celebração da identidade. Através da história de Francisco e Catirina, a festa
subverte hierarquias, celebra a resiliência e reafirma, ano após ano, o poder
da vida sobre a morte. É um patrimônio que não está confinado em museus, mas
que vive e pulsa com a batida dos tambores e o canto do povo nas ruas do
Maranhão.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia, 2006.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12.
ed. São Paulo: Global, 2012.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Cultura popular e
sensibilidade romântica. Rio de Janeiro: Funarte, 1988.
PRASS, Luciana. O Bumba-Meu-Boi do Maranhão. Rio de Janeiro:
Funarte, 2013. (Coleção Folclore em Cadernos).
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