A carioca Suzana
Herculano-Houzel pulou de alegria ao ver, hoje, sua descoberta sobre o
desenvolvimento do cérebro de humanos e animais na revista científica mais
prestigiada do planeta. Mas aponta que é difícil para brasileiros repetir seu
feito, já que o Brasil não financia estudos nacionais
Estudo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) acabou com o mito que vigorava na comunidade científica de que o
córtex cerebral de mamíferos, parte do cérebro responsável pela cognição, se dobra
para acolher mais neurônios. Segundo o artigo, o córtex assume determinada
forma, pequena ou grande, por um motivo puramente físico, em resposta às
diferentes pressões que sofre ao longo do desenvolvimento.
Em conversa com o site
de VEJA, a neurocientista carioca Suzana Herculano-Houzel, autora do artigo,
explicou o estudo, indicou suas aplicações e discutiu a dificuldade de se fazer
pesquisa no Brasil.
Oucos trabalhos de brasileiros conseguem ser publicados em
revistas renomadas como a Science. É difícil fazer pesquisa no Brasil? Os dez anos que passamos pesquisando esse assunto foram
tranquilos. O curioso e, agora, irônico é que, justamente quando conseguimos
publicar na Science, estamos em um
momento nada tranquilo. Tanto o governo federal quanto o estadual cortaram a
verba para a ciência, e eu não tenho dinheiro para continuar trabalhando no
laboratório. Já temos vários financiamentos aprovados, mas há vários meses o
dinheiro não é liberado. Eu tinha duas alternativas: parar tudo ou tirar
dinheiro do meu bolso para que os alunos conseguissem tocar seus trabalhos.
Agora me resta esperar por um reembolso, e já estão me devendo mais de 15 000
reais. Cada vez mais temos atenção dos colegas estrangeiros, da mídia
internacional, a Science considera que nosso trabalho é digno
de ser publicado, mas isso não parece fazer diferença para o nosso governo.
Como o financiamento da pesquisa aqui é quase que 100% dependente de dinheiro
do governo, ficamos nas mãos deles.
Você pensa em sair e trabalhar fora? Eu considero cada vez mais isso, para me dedicar a ciência como
meus colegas estrangeiros o fazem, sem ter que lidar com essas questões
absurdas que só mostram a falta de consideração, respeito e apreço do governo
com o trabalho dos cientistas brasileiros.
Vamos esquecer, por um momento, disso e falar de seu belo
estudo. Por que analisar o motivo de o córtex se dobrar? O córtex cerebral é a parte do cérebro responsável pela cognição
e é a que mais cresce ao longo da evolução, conforme novas espécies aparecem.
Antes, nós pensávamos de forma intuitiva, sem base em dados reais. Conforme
essa região aumentou, foi se dobrando para permitir que coubessem mais
neurônios ali. Ou, então, se dobrou ao ganhar mais neurônios. Não sabíamos de
fato a ordem dos fatores. Nesse trabalho testamos a teoria. Para entender o que
quero dizer com dobrar, vale pensar no que acontece quando você joga uma toalha
no cesto de roupa suja: ela não cabe inteira, então você precisa ajustá-la para
que caiba. O córtex também é uma superfície, exatamente como uma toalha.
Esse parece ser um conceito um tanto básico. Não havia sido
testado ainda? Já conhecíamos algumas
incongruências sobre a teoria, o problema é que ninguém sabia se era realmente
assim que o córtex funcionava. Se você comparar o ser humano com o elefante,
por exemplo, o córtex do último é maior do que o nosso, e se essa teoria fosse
verdadeira, isso significaria que ele teria mais neurônios que nós. Como os
neurônios são as unidades essenciais de processamento de informação, os
elefantes seriam mais capazes cognitivamente, e deveriam estar nos estudando,
não o contrário.
Qual foi o método para medir o grau de dobras do córtex de cada
espécie? Imagine uma folha de
papel. Amasse-a com toda a força e depois solte. Essa folha tem uma área de
superfície, que continua idêntica mesmo depois de você tê-la amassado. Quando a
folha vira uma bolinha, porém, só uma parte dessa superfície fica exposta.
Então, o grau de dobra é a razão entre a superfície total e essa parte que
ficou exposta depois de você amassar a folha.
E depois bateram esses dados com o número de neurônios de cada
espécie? Exato. Nos últimos dez
anos, o nosso laboratório recolheu dados sobre a quantidade de neurônios de 38
espécies, incluindo humanos. Há um ano, decidimos fazer um teste para responder
as perguntas: o córtex cerebral que tem mais neurônios é necessariamente mais
dobrado?; e um córtex que é mais dobrado necessariamente tem mais neurônios?
Nos dois casos, descobrimos, a resposta é não. Isso mudou completamente aquela
ideia que experessei ao responder à sua primeira pergunta. Ao comparar um porco
com um babuíno, o macaco tem dez vezes mais neurônios do que o porco, mas os
dois têm córtex com o mesmo grau de dobras. O contrário também acontece: o
elefante tem um córtex duas vezes mais dobrável que o do humano, mas têm menos
neurônios. O que queríamos era mostrar, pela primeira vez, que a teoria que
todos aceitaram por décadas, que institivamente fazia sentido, na prática não
funciona.
O que rege o grau de dobras, então? Foi isso que fomos pesquisar. O Bruno Mota, físico que trabalha
com a gente, olhou para esses números e para o córtex de várias espécies, e
deduziu que eles assumiam aquela estrutura porque era a mais estável. Explico:
ao jogar uma bolinha de gude em um coador de café, ela rola e para no fundo do
cone, certo? Ela para ali porque esta é a região mais estável. Na física,
falamos que essa é a área que ela tem menos energia livre. Isso acontece
naturalmente com todos os corpos, eles tendem a ficar na configuração de menor
energia livre. O córtex, por exemplo, sofre uma série de pressões e forças: ele
cresce, mas existe a pressão atmosférica e também a pressão de dentro do
cérebro, além da própria tensão dos axônios, as fibras que prendem o córtex a
outras estruturas do cérebro. A ideia é que a cada instante, ao longo do
desenvolvimento, o córtex responda a essas forças e atinja aquela estrutura.
Criar uma equação matemática a partir dessa equação foi fácil? Para nossa primeira surpresa, a equação é muito simples: ela
relaciona superfície total do córtex (como
uma folha aberta), a espessura do córtex, e a área exposta na
posição mais estável (a
folha amassada). Certinha, a equação é "área total da
superfície x raiz quadrada da espessura = área exposta x uma constante K".
Depois, aplicamos essa equação aos dados das espécies, e para nossa surpresa,
deu certo em todos os casos, sem nenhuma exceção.
Como relacionaram essa regra do córtex ao papel? Como a fórmula se aplica a todas as espécies, sem exceção,
sabemos que o grau de dobra do córtex é física pura, acontece conforme ele se
adapta às forças que se abatem sobre ele. Assim, outras superfícies com o mesmo
tipo de estrutura, como, por exemplo, uma folha de papel, deveriam responder da
mesma maneira. Comecei a fazer bolinhas de papel de tamanho e espessura
diferentes em casa e percebi que tudo também se encaixava na equação. Isso
confirma que o grau de dobras do córtex realmente se estabelece por física
pura. A equação funciona para superfícies que se deformam quando se aplica
pressão a elas. Com tecido não funcionaria, porque o material não tem memória.
Quais aplicações essa conclusão terá? A primeira é na área de pesquisa básica, para entendermos o
processo de desenvolvimento do córtex e como os neurônios se espalham, formando
variantes do córtex de espessuras diferentes. São propriedades fundamentais do
cérebro, que a gente ainda hoje não conhecia. Há também aplicações para quem
estuda o desenvolvimento do córtex tanto normal, quanto alterado por doenças.
Um exemplo é um distúrbio genético que altera a migração dos neurônios nessa
região, e o resultado é um cérebro humano com um córtex de volume normal, mas
com superfície lisa. Até esse trabalho, não se conhecia se existia um elo que
explicasse como essa migração causaria um córtex que não se dobra.
Fonte: Veja
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