Radio Evangélica

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Folclore Brasileiro: Estéticas Vivas de Resistência e Reinvenção Cultural

Mais do que apenas narrativas e rituais, o folclore brasileiro se manifesta como uma complexa estética da terra, do gesto e da coletividade. Em cada dança, cantiga ou brincadeira ritual, estão inscritos modos de sentir e pensar que transcendem as lógicas lineares e racionalistas da modernidade ocidental. Como destacam os estudos da estética decolonial (Quijano, 2005; Mignolo, 2017), os saberes populares não são meras "formas alternativas" de conhecimento; eles constituem universos ontológicos próprios, onde corpo, território e espiritualidade se entrelaçam em uma trama indissociável.

A exuberância do Bumba Meu Boi, por exemplo, vai além da performance. Ela mobiliza mitos de morte e renascimento, conecta os ciclos da terra aos ciclos do corpo e reconstrói coletivamente memórias de resistência negra e indígena no Brasil profundo. A riqueza de suas cores, máscaras e músicas não é apenas ornamental; é política. Ela desafia a monotonia do mundo técnico e reativa o encantamento como uma forma vital de sobrevivência cultural.

Folclore Urbano e Reexistência nas Periferias

Se historicamente o folclore foi associado ao "interior" ou ao "mundo rural", hoje ele pulsa vibrantemente nos centros urbanos, especialmente nas periferias e favelas. Manifestações como o funk, o rap, o slam, o grafite e o passinho podem ser compreendidas como formas contemporâneas de folclore. São práticas populares de expressão coletiva que atualizam a resistência cultural em novas linguagens e contextos, provando a natureza dinâmica e adaptável do folclore.

Essas práticas emergem como "gramáticas da reexistência", nos termos de Sueli Carneiro (2003), pois elaboram estratégias simbólicas para reverter o silenciamento e a precarização social. Longe de serem meras reproduções, o folclore urbano cria novas estéticas e formas de pertencimento, conectando tradição e inovação, ancestralidade e invenção. Nesse sentido, o folclore não é um passado fossilizado, mas um campo vivo e dinâmico onde o povo se reinventa a cada gesto, em um diálogo constante com as dores e potências do presente.

Política do Encantamento e Utopias Comunitárias

Diante do avanço de narrativas tecnocráticas, produtivistas e individualistas, o folclore nos propõe uma lógica distinta: a lógica do encantamento. Os mitos, as danças e as festas populares não se desconectam da vida; eles a expandem. Funcionam como tecnologias afetivas e poéticas que nos lembram que viver é também celebrar, cuidar, rir, cantar e partilhar.

A "política do encantamento", como sugerem autores como Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski (2014), não é uma evasão da realidade, mas uma insurgência ética e estética contra o desencantamento neoliberal. Ela devolve valor àquilo que foi reduzido à mera utilidade: o tempo compartilhado, o silêncio ritual, o corpo em comunhão com o outro e com o mundo.

Portanto, revisitar o folclore à luz das crises contemporâneas – sejam elas sociais, ecológicas ou espirituais – é repensar as bases do que entendemos como vida digna. É propor uma utopia comunitária ancorada na escuta, na reciprocidade e no reconhecimento das diferenças como uma riqueza inestimável. O folclore brasileiro se firma, assim, não apenas como um repositório de tradições, mas como um motor para a construção de futuros mais justos e encantados.

Referências Bibliográficas

  • CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003.
  • CUNHA, Paulo. Encantarias do povo: performances e religiosidade popular no Brasil. São Paulo: Edições Sesc, 2021.
  • DIONÍSIO, Oswaldo. Festas populares e resistência cultural. Recife: Fundarpe, 2012.
  • MIGNOLO, Walter. Estética decolonial: arte, método e política. São Paulo: UBU Editora, 2017.
  • NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Perspectiva, 1980.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Déborah. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. São Paulo: Cultura e Barbárie, 2014.

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