Radio Evangélica

terça-feira, 1 de julho de 2025

Sobrevivências Sonoras e Visuais: Música, Dança e Tecelagem como Linguagens de Poder no Império Asteca

Música e Dança: a Liturgia do Movimento

Se a escultura petrificava a cosmologia, a música(cuīcatl) e a dança(miztli) conferiam‑lhe fôlego. As escolas de artes rituais (cuicacalli) preparavam sacerdotes‑cantores que memorizavam hinos divinos para cerimônias agrícolas, coroações ou rituais de guerra (Katz,1997). Instrumentos como o huehuetl (tambores verticais) e as trombetas de concha evocavam vozes de deuses aquáticos, enquanto flautas de argila afinadas em quartas reforçavam a relação numérica sagrada entre som e cosmos.

A coreografia reproduzia mitos fundacionais: na Festa de Panquetzaliztli, dançarinos vestidos de colibris encenavam o nascimento de Huitzilopochtli, transformando a praça do Templo Mayor num palco cosmogônico. O suor colectivo era considerado oferenda: “dançar é queimar o corpo para que o Sol não se apague” (Sahagún, Florentine Codex, VI).

Tecelagem, Plumas e Pedrarias: Vestir o Divino

A arte têxtil asteca, embora perecível, era uma das formas mais sofisticadas de riqueza. Tecidos de algodão fino recebiam tinturas extraídas de insetos (cochonilha), obtendo vermelhos destinados à nobreza. Já as capas de penas (ahuítzotl) utilizavam o iridescente verde‑azulado do quetzal, pássaro associado a Quetzalcóatl.

  • Oficinas Reais de Amantla: controlavam tributos de plumas e distribuíam vestimentas cerimoniais a governantes aliados.
  • Simbolismo cromático: o azul‑turquesa em mosaico de pedra (como na máscara de Xiuhtecuhtli) indicava fogo solar transformado em mineral, uma “chama petrificada” (Pasztory,2005).

Esses trajes não eram apenas ornamentos: a indumentária convertia o corpo humano em suporte ritual, “encarnando” as forças divinas perante a comunidade.

Códices Pictográficos: Memória, Política e Resistência

Além das obras lapidares, códices sobre papel de amatl ou pele de veado funcionavam como arquivos dinásticos e mapas de tributos. Após 1521, missionários queimaram inúmeros volumes; contudo, códices como o Codex Borbonicus e o Mendoza revelam como os próprios tlacuilos (escribas‑pintores) adaptaram padrões iconográficos para dialogar com autoridades coloniais, preservando topônimos, genealogias e práticas fiscais sob novos alfabetos (Boone,2000).

Confluências Pós‑Conquista: Sincretismos em Pedra e Tinta

Em mosteiros franciscanos do vale do Anáhuac, motivos nahuas — serpentes emplumadas, flores de tzompantli — ressurgiram discretamente em frisos de claustros e retábulos. Essa “dupla leitura” permitia aos indígenas reconhecer antigas divindades sob a capa de santos, enquanto frades utilizavam a familiar iconografia para catequizar (Bargellini,2010). Assim, a arte asteca não desapareceu: transmutou‑se, articulando novas gramáticas híbridas que ainda hoje se desvelam nos muros das capelas posas.

Considerações Finais

Ao ampliar nossa lente para música, dança, tecelagem e códices, torna‑se evidente que a arte asteca era um sistema multissensorial de comunicação religiosa e política. Som, cor, movimento e texto integravam‑se numa pedagogia do sagrado que atravessava o cotidiano, legitimava hierarquias e forjava identidades. Mesmo sob a imposição colonial, essas linguagens resistiram — ora camufladas, ora recicladas —, continuando a narrar a cosmovisão nahua em paletas sincréticas que desafiam leituras simplistas de “extinção cultural”.

Referências Bibliográficas

  • Bargellini, C. (2010). “Indigenous Motifs in Early Colonial Monastic Art of Central Mexico.” Journal of Latin American Art,12(2).
  • Boone, E. H. (2000). Stories in Red and Black: Pictorial Histories of the Aztecs and Mixtecs. University of Texas Press.
  • Katz, F. (1997). The Ancient American World of Music. Mexico City: INAH.
  • Pasztory, E. (2005). Aztec Art. University of Oklahoma Press.
  • Sahagún, B. de. (ca.1577). Historia General de las Cosas de Nueva España (Florentine Codex).

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