Radio Evangélica

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Estéticas da Terra: Folclore, Corpo e Criação Coletiva

Mais do que narrativa e rito, o folclore brasileiro é também estética — uma estética da terra, do gesto e da coletividade. Em cada dança, cantiga ou brincadeira ritual, estão inscritos modos de sentir e pensar que escapam às lógicas lineares e racionalistas da modernidade ocidental. Como apontam estudos da estética decolonial (Quijano, 2005; Mignolo, 2017), os saberes populares não são apenas “formas alternativas” de conhecimento: eles compõem universos ontológicos próprios, em que corpo, território e espiritualidade se entrelaçam.

A estética do Bumba Meu Boi, por exemplo, não é apenas performática: ela mobiliza mitos de morte e renascimento, conecta os ciclos da terra aos ciclos do corpo e reconstrói coletivamente memórias de resistência negra e indígena no Brasil profundo. A exuberância de suas cores, máscaras e músicas é política: ela desafia a monotonia do mundo técnico e reativa o encantamento como forma de sobrevivência cultural.

Folclore Urbano e Reexistência nas Periferias

Se o folclore foi historicamente associado ao “interior” ou ao “mundo rural”, hoje ele também pulsa nos centros urbanos, especialmente nas periferias e favelas. O funk, o rap, o slam, o grafite e o passinho podem ser compreendidos como formas contemporâneas de manifestação folclórica — práticas populares de expressão coletiva que atualizam a resistência cultural em novas linguagens e contextos.

Essas práticas emergem como "gramáticas da reexistência", nos termos de Sueli Carneiro (2003), porque elaboram estratégias simbólicas para reverter o silenciamento e a precarização. Em vez de mera reprodução, o folclore urbano cria novas estéticas e formas de pertencimento, conectando tradição e inovação, ancestralidade e invenção.

Nesse sentido, o folclore não é um passado fossilizado: é um campo vivo, dinâmico, em que o povo reinventa a si mesmo a cada gesto. E essa reinvenção se dá em diálogo com as dores e potências do presente.

Política do Encantamento e Utopias Comunitárias

Diante do avanço das narrativas tecnocráticas, produtivistas e individualistas, o folclore nos propõe uma outra lógica: a lógica do encantamento. Os mitos, as danças e as festas populares não se desconectam da vida: eles a expandem. Eles funcionam como tecnologias afetivas e poéticas que nos lembram que viver é também celebrar, cuidar, rir, cantar e partilhar.

A “política do encantamento”, como sugerem autores como Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski (2014), não é evasão da realidade, mas uma insurgência ética e estética contra o desencantamento neoliberal. Ela devolve valor àquilo que foi reduzido à utilidade: o tempo compartilhado, o silêncio ritual, o corpo em comunhão com o outro e com o mundo.

Portanto, revisitar o folclore à luz das crises contemporâneas — sociais, ecológicas, espirituais — é repensar as bases mesmas do que entendemos como vida digna. É propor uma utopia comunitária ancorada na escuta, na reciprocidade e no reconhecimento das diferenças como riqueza.

Referências Bibliográficas Adicionais

  • CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2003.
  • QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
  • MIGNOLO, Walter. Estética decolonial: arte, método e política. São Paulo: UBU Editora, 2017.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Déborah. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. São Paulo: Cultura e Barbárie, 2014.
  • NASCIMENTO, Abdias do. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Perspectiva, 1980.
  • DIONÍSIO, Oswaldo. Festas populares e resistência cultural. Recife: Fundarpe, 2012.
  • CUNHA, Paulo. Encantarias do povo: performances e religiosidade popular no Brasil. São Paulo: Edições Sesc, 2021.

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