A estética do Bumba Meu Boi, por exemplo, não é apenas
performática: ela mobiliza mitos de morte e renascimento, conecta os ciclos da
terra aos ciclos do corpo e reconstrói coletivamente memórias de resistência
negra e indígena no Brasil profundo. A exuberância de suas cores, máscaras e
músicas é política: ela desafia a monotonia do mundo técnico e reativa o
encantamento como forma de sobrevivência cultural.
Folclore Urbano e Reexistência nas Periferias
Se o folclore foi historicamente associado ao “interior” ou
ao “mundo rural”, hoje ele também pulsa nos centros urbanos, especialmente nas
periferias e favelas. O funk, o rap, o slam, o grafite e o passinho podem ser
compreendidos como formas contemporâneas de manifestação folclórica — práticas
populares de expressão coletiva que atualizam a resistência cultural em novas
linguagens e contextos.
Essas práticas emergem como "gramáticas da
reexistência", nos termos de Sueli Carneiro (2003), porque elaboram
estratégias simbólicas para reverter o silenciamento e a precarização. Em vez
de mera reprodução, o folclore urbano cria novas estéticas e formas de
pertencimento, conectando tradição e inovação, ancestralidade e invenção.
Nesse sentido, o folclore não é um passado fossilizado: é um
campo vivo, dinâmico, em que o povo reinventa a si mesmo a cada gesto. E essa
reinvenção se dá em diálogo com as dores e potências do presente.
Política do Encantamento e Utopias Comunitárias
Diante do avanço das narrativas tecnocráticas, produtivistas
e individualistas, o folclore nos propõe uma outra lógica: a lógica do
encantamento. Os mitos, as danças e as festas populares não se desconectam da
vida: eles a expandem. Eles funcionam como tecnologias afetivas e poéticas que
nos lembram que viver é também celebrar, cuidar, rir, cantar e partilhar.
A “política do encantamento”, como sugerem autores como
Eduardo Viveiros de Castro e Deborah Danowski (2014), não é evasão da
realidade, mas uma insurgência ética e estética contra o desencantamento
neoliberal. Ela devolve valor àquilo que foi reduzido à utilidade: o tempo
compartilhado, o silêncio ritual, o corpo em comunhão com o outro e com o
mundo.
Portanto, revisitar o folclore à luz das crises
contemporâneas — sociais, ecológicas, espirituais — é repensar as bases mesmas
do que entendemos como vida digna. É propor uma utopia comunitária ancorada na
escuta, na reciprocidade e no reconhecimento das diferenças como riqueza.
Referências Bibliográficas Adicionais
- CARNEIRO,
Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo
Negro, 2003.
- QUIJANO,
Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber. Buenos Aires:
CLACSO, 2005.
- MIGNOLO,
Walter. Estética decolonial: arte, método e política. São Paulo:
UBU Editora, 2017.
- VIVEIROS
DE CASTRO, Eduardo; DANOWSKI, Déborah. Há mundo por vir? Ensaio sobre
os medos e os fins. São Paulo: Cultura e Barbárie, 2014.
- NASCIMENTO,
Abdias do. O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista.
São Paulo: Perspectiva, 1980.
- DIONÍSIO,
Oswaldo. Festas populares e resistência cultural. Recife: Fundarpe,
2012.
- CUNHA,
Paulo. Encantarias do povo: performances e religiosidade popular no
Brasil. São Paulo: Edições Sesc, 2021.
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