Inicialmente, cem delas vão receber
bolsa para voltar às aulas e se matricular em cursos do Pronatec
SÃO PAULO - A prefeitura de São Paulo anunciará no fim do mês a criação de uma
bolsa de um salário mínimo mensal (R$ 788) para que, inicialmente, cem
travestis e transexuais da capital voltem a estudar e se matriculem em cursos
técnicos do Pronatec. Para receber o salário do município, as beneficiárias
terão que comprovar presença nas aulas. A exigência é semelhante à do principal
programa de transferência de renda do governo federal, o Bolsa Família. A
iniciativa é inédita no Brasil e na América do Sul e custará cerca de R$ 2
milhões aos cofres públicos em 2015. O valor é três vezes maior do que o
orçamento do próprio governo federal para ações voltadas ao público LGBT no ano
passado.
- O Brasil é o país que
mais mata travestis no mundo. Mata quatro vezes mais do que o México, o segundo
mais violento. Essas pessoas nunca foram tratadas como cidadãs, sempre foram
empurradas para as ruas pelas famílias, pela escola e pela sociedade. Queremos
tratá-las como gente, com a opção de se prostituir ou não - afirma Rogério
Sottili, secretário de Direitos Humanos do município, responsável pela coordenação
do programa.
A ideia é prioritária para
o prefeito Fernando Haddad, que pessoalmente pediu a elaboração do programa. A
mãe de Haddad vive em uma zona de prostituição de travestis. O confronto
cotidiano com a realidade teria gerado a urgência no prefeito.
EXPANSÃO ATÉ O SEGUNDO
SEMESTRE
Segundo Sottili, o
programa começa com poucas vagas, mas poderá ser ampliado já no segundo
semestre. A ideia é que as travestis permaneçam no programa por dois anos e
saiam de lá formalmente empregadas. Não existem estatísticas oficias sobre o
número de transexuais e travestis vivendo em São Paulo, mas a secretaria estima
que sejam ao menos quatro mil.
- Elas são alvo
preferencial do tráfico de pessoas, do tráfico de drogas. Entre as
beneficiárias, nenhuma tem renda fixa, todas vivem em moradia precária, não
terminaram a escola e começaram a se prostituir ainda na infância. Delas, 31%
admitiram ter silicone industrial injetado no corpo, e 60% afirmaram já ter
sofrido alguma agressão física por sua identidade de gênero - explica
Alessandro Melchior, coordenador de políticas LGBT da prefeitura e autor do
programa.
A paulistana Aline Rocha,
de 36 anos, é a face que ilustra os dados elencados por Melchior. Os traços
femininos dos olhos e do nariz desenhados a bisturi são emoldurados por um
espesso cabelo negro implantado cirurgicamente. Para custear as operações,
Aline se prostitui há quase 20 anos. Parou de estudar na 4ª série — seu jeito
afeminado a tornava alvo de espancamentos dos colegas. Ela tentou outros
trabalhos, chegou a ser atendente de uma locadora de vídeo, mas diz que perdeu
o emprego ao resistir aos assédios sexuais do patrão. A prostituição, segundo
Aline, era sua única fonte possível de renda. Sem dinheiro para reconstruir o
corpo todo com plásticas, apelou para a caseira solução de colocar silicone
industrial nos glúteos. Como muitas travestis brasileiras, chegou a ir morar na
Itália, onde fez centenas de programas. Acabou presa pela polícia italiana.
- Sair da rua é tudo o que
eu mais quero na vida. Não tem nada pior do que ser tratada como um pedaço de
carne, cada dia um estranho diferente passando a mão no seu corpo - conta,
entre lágrimas.
Além de si mesma, Aline
sustenta a mãe. Afirma que estava a ponto de “acabar com a própria vida” quando
foi selecionada pelo programa:
- Minha esperança é que
isso me devolva o respeito, a dignidade. Quero poder entregar currículos e ser
selecionada para trabalhar como todo mundo. Além de garantir educação (em salas
mistas de duas escolas municipais no centro da cidade), o programa obriga as
beneficiárias a prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Em troca, além
do dinheiro, a prefeitura irá fornecer hormônios femininos para as travestis em
unidades básicas de saúde. Hoje há uma fila de quase duas mil pessoas à espera
de tratamentos hormonais desse tipo na rede pública. Por falta de opção, muitas
recorrem ao arriscado mercado negro.
Além disso, o município
irá inaugurar o primeiro albergue público exclusivo para travestis. É para lá
que deverá se mudar Jennifer Araújo, de 31 anos. Jennifer está sem casa nos
últimos dois meses, desde que resolveu deixar de se prostituir e se inscreveu
no programa municipal. Ela é reticente sobre sua condição anterior e
desconversa quando perguntada sobre cafetinas e pontos de prostituição. Mas,
com frequência, travestis são aliciadas sexualmente e pagam com o corpo pela
moradia. Quando desistem da prostituição, ficam também sem teto.
- Tudo o que eu quero é
trabalhar atrás de um computador ou ser assistente social. Acho um luxo - diz
Jennifer, que começou a se prostituir aos 16 anos, depois que ficou órfã.
PREOCUPAÇÃO COM A VELHICE
Ela diz que sua motivação para procurar a prefeitura foi pensar no
futuro, especificamente na velhice. E lembra que a prostituição a atraiu porque
o dinheiro que recebia era maior do que nos empregos que conseguiria com sua
baixa escolaridade.
O programa não obriga as travestis a deixar a prostituição. Mas, ao
remunerá-las para estudar, cria uma inédita oportunidade para isso. Jennifer
ostenta no rosto as marcas de uma paulada desferida por um cliente que quebrou
seu maxilar. Ela sabe que nada vai apagar as cicatrizes de seu passado, mas
abre um sorriso diante da possibilidade de recomeçar.
Fonte: Globo.com